um texto de Alice Corinde:


Margarida,

É pessoalmente que te dirijo esta carta. Surpreendi o teu rosto numa fotografia de jornal, a propósito dessa coisa sem nome chamada, na entusiástica pasmaceira de Coimbra, a "recepção ao caloiro", e apeteceu-me escrever-te. Mas saberás tu ler? A fotografia, resultante do ganha-pão do fotógrafo de serviço, que tu em tua pueril agitação não viste, mostra um grupo de rapazes e raparigas vestidos de preto — tu estás em primeiro plano —, envergando o uniforme do folclore local, a museológica capa-e-batina, como no antigamente, na carne tenrinha de vitela, alardeando uma alegria que senti próxima duma pertinaz parvoíce, dado o objecto dela.

O jornal — um desses sossegados e adormecentes fazedores de amnésia — dedica-vos, como é legítimo e natural, uma longa coluna, eivada dessa alarve simpatia satisfeita perante um "acontecimento" simultaneamente confirmador de que tudo continua nos eixos e de que assim vai continuar até à eternidade. Ali se dizia pois (eu resumo) que aquilo — os festejos da tal "recepção ao caloiro", requentada glória de Coimbra — tinha posto a vossa "imaginação a funcionar".

Todos sabemos que um jornalista, em questões de imaginação, se contenta com bem pouco; daí ser ele também incapaz, como tu, de imaginar o fim da actividade mercenária da comunicação desalienada. É a propósito dessa imaginação que te escrevo. Não me surpreendeu ter-te visto naquela geringonça mental que para vocês é uma festa; há quem se divirta com ainda pior. E tu és uma rapariga prendada, ciente dos teus deveres, dotada de uma educação salubre, és trabalhadora e honesta, respeitas muitíssimas coisas ("quantas mais melhor, Alice", retorquia-me sempre a tua mãe), e ademais tens à tua espera, ao que julgas, um futuro promissor — id est, uma boa conta bancária. Sentes-te, em suma, fazendo parte dum escol a que um prudente orgulho automaticamente te incorpora. E tudo, naturalmente, porque fazes parte desse comovente e interessante universo do estudantismo universitário novo modelo, que é sempre o mesmo.

Se a imaginação social é coisa que me parece ir desaparecendo a olhos vistos, substituída pela papa televisiva, a imaginação no seio dos estudantes está já por demais impregnada pelo rasteiro pragmatismo do cursozito e da carreira para que deles, como tais, como tu, se possa esperar algo verdadeiramente notável, quero eu dizer, exterior ao espírito funcional que a sociedade reclama e o Estado, atento, lhes prescreve. É este realismo rasteiro do "estatuto social" e da conta bancária que hoje já vos define — por toda a parte —, e nessa medida fazes tu parte integrante duma geração local (refiro-me ao país) que irá mostrar-se temível nos diversificados serviços e agências administradores da submissão mental (já presente, mas que vai sobretudo desenvolver-se contigo, e já não "a bem da nação", arcaica noção de outrora — tu não te lembras disso — mas a bem do indivíduo a abstractizar, clean, cujos gélidos contornos pude sentir na satisfação universitária com que o teu e os outros rostos da fotografia pareciam olhar-me).

Quando te conheci eras tu uma miúda. Com que apreensões te vi crescer! Agora eis-te formada para essa ciência do trabalho e da anexa miséria (não se pode pronunciar o primeiro sem cheirar a segunda) que te congrega, e vos congrega a todos, na crença morigerada da positiva materialidade que define este mundo e lhe da substância, e que parece resumir-se a um nem heróico nem cobarde vasto esforço suicida e poeirento.

Rebanho lindo e bem comportado sois portanto do que a sociedade precisa que se "pense", a fim de desenvolver o que já é: um mundo nuclearizado. A fim de propagar, com o vosso juvenil entusiasmo, a peste que a faz avançar, e a liga à desertificação futura. Quando chegares a velha talvez nem morras, Margarida.

Alice, 12 de Janeiro de 1983

2 comentários:

Carne de vitela??? Cliché!

3 de maio de 2009 às 22:04  

Descrição certeira.

18 de maio de 2009 às 14:00  

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