Que arapuca, hein Debord?


Folheto de prevenção a programações “culturais” em “comemoração” aos 40 anos do Maio de 68


Os dias desta sociedade estão contados; suas razões e seus méritos foram pesados, e verificados fracos; seus habitantes estão divididos em dois partidos, um dos quais quer que ela desapareça.(Prefácio à quarta edição italiana de A sociedade do espetáculo, de 1979)

É preciso ler este livro (A sociedade do espetáculo) tendo em mente que ele foi escrito com o intuito deliberado de perturbar a sociedade espetacular.(Advertência da edição francesa de A sociedade do espetáculo, de 1992)

Guy Debord

O pior que poderia acontecer ao situacionista Guy Debord está em curso. Como sabemos, suas idéias viraram modinha intelectual. Promiscuidade teórica escorregando pelas bocas moribundas de arquitetos, historiadores, sociólogos, jornalistas, socialites, artistas e outros picaretas pelo ocidente afora. A classe de especialistas deste naipe “cultural” circula em espaços outorgados pela organização da cultura espetacular [1] cuspindo “situacionismo” [2] e convertendo a imagem negativa de Debord à de um ícone pop, estéril e inofensivo.
Tratam de um falso Debord. Nem mesmo buscam dissimular sua completa ignorância quanto ao verdadeiro Debord, crítico da separação e do espetáculo e juntamente a Raoul Vaneigem [3], crítico da vida cotidiana. “Esses diversos especialistas das aparentes discussões “ que ainda se chamam, abusivamente, culturais ou políticas “ tiveram de ajustar sua lógica de acordo com as do sistema que pôde utilizá-las; não apenas porque foram selecionados por ele, mas sobretudo porque nunca aprenderam nada além disso.” (Debord, 1979). Têm o costume, essa pseudo-elite, de destacar em suas medíocres “aparições” apenas os recursos do espetáculo, omitindo sobremaneira seus usos. Confundem espetáculo com o “domínio da mídia”, ligam-no isoladamente a categorias como “o olhar”, ou “a imagem”. Opera-se o jogo sujo da banalização (esvaziamento pela repetição) “ técnica de ocultação espetacular tão eficaz quanto àquelas empreendidas por torturadores a soldo do Estado nos porões das ditaduras fascistas.
No Brasil, assim como no resto do mundo, o “domingo” é “espetacular”, o “esporte” é “espetacular”, todo e qualquer jogo de futebol é adjetivado por Galvão Bueno como um “espetáááááculo!” e até mesmo uma criatura deformada (ética e esteticamente) como a Hebe se arrisca em incursões intelectuais dessa natureza. É notável, em todos os lugares, a recente onda de repetição automática, abusiva e reificada da noção de espetáculo, sobretudo nos veículos de comunicação. Há sutis diferenças nas noções enganosas de espetáculo vomitadas na TV por um idiota como Pedro Bial em horário nobre, daquelas ingurgitadas por políticos como F. Gabeira ou por intelectualites acéfalas em sofás de programas de auditório. Se o leitor nos permite o exemplo sujo, possivelmente uma vedete do tipo Xuxa pode surgir num próximo filme publicitário na TV apresentando um “eichhhhpetáculo de absorvente feminino”. Tal visão, além de assombrosa, é perfeitamente viável nas atuais circunstâncias.
Obviamente, tal banalização generalizante assume diferentes níveis qualitativos no interior do debate político-cultural contemporâneo. Mesmo entre autores marxistas (que se distanciam largamente do falso otimismo dos publicitários do espetáculo), há também confusão, como aquela conduzida por Michael Lowy no livro A estrela da manhã, onde se recupera uma estranha “dívida” deixada por “Debord e seus amigos” para com o surrealismo. Lowy, citando Gonzales (1998) diz que “este parentesco evidente nunca será assinalado pelos situacionistas”. Ora, os situacionistas obviamente não assinalaram tal aproximação porque desde sua formação inicial, buscaram posicionar-se na superação do surrealismo: “O dadaísmo quis suprimir a arte sem realizá-la; o surrealismo quis realizar a arte sem suprimi-la. A posição crítica elaborada desde então pelos situacionistas mostrou que a supressão e a realização da arte são os aspectos inseparáveis de uma mesma superação da arte.” (Sde § 191) Sua análise não se aproxima da idéia de “fim da vanguarda”, cuja teoria situacionista tratou de atingir em 60. A relação assinalada por Lowy entre os situacionistas e a “sensibilidade romântica revolucionária”, não leva em conta o debate histórico entre Guy Debord e Henry Lefebvre no fim da década de 50. Para os situacionistas, a “tendência cultural” baseada na discordância “especificamente moderna entre o indivíduo progressista e o mundo” não é suficiente para se estabelecer uma ação revolucionária dentro da cultura: “A tarefa prática de superar nosso desacordo com o mundo, ou seja, de vencer a decomposição mediante construções mais elevadas, não é romântica. Seremos “revolucionários românticos”, no sentido de Lefebvre, na medida precisa de nosso fracasso.” (Teses sobre a revolução cultural, Internacional Situacionista n.1, 1958) Lowy, no entanto, nos apresenta uma reflexão pertinente ao tema desse folheto: “Guy Debord é uma arma infernal difícil de desmontar. E, no entanto, não é por falta de tentativas. Tenta-se, ainda hoje (...) neutralizá-la, adoçá-la, estetizá-la, banalizá-la.”
A falsa-idéia de espetáculo (esvaziado de sua negatividade original) está presente em todos os cantos da falsa consciência da sociedade, seu conteúdo crítico fora absorvido e neutralizado a exemplo do que acontecera anteriormente com o conceito marxista de “revolução”. Vivemos um momento que, nas palavras de um conhecido, “até mesmo o conceito de banalização fora banalizado”. Nestes termos, o conceito de espetáculo caminha domesticado, ao lado de noções notadamente pós-modernas e anti-históricas (portanto anti-situacionistas) como as de “simulacro”, ou “hiper-realidade”, elaboradas por teóricos expoentes do vazio (advogados do existente) como Baudrillard ou Marshall McLuhan.
Para Debord, o “pensamento especializado do sistema espetacular” acarreta duas formas de pensamento igualmente submissos, o que ele chama de “pensamento do espetáculo”: 1. A crítica espetacular do espetáculo: empreendida pela sociologia moderna, que estuda a separação com o auxílio apenas dos instrumentos conceituais e materiais outorgados pela separação; e, 2. A apologia do espetáculo: constitui o pensamento do não-pensamento, num esquecimento explícito da prática histórica, nas diversas disciplinas que se enraízam o estruturalismo. (Sde § 196)
Debord é tomado nestes círculos como um autor “obscuro”, underground, ingrediente suficiente para os que se apropriam da organização social da aparência no espetáculo perpetuem novidades “pós-estruturalistas” e ampliem mercados consumidores da chamada “anti-cultura” (imbecilmente cultuada pela juventude que se pretende ser absolutamente moderna). O cenário é repugnante: Na Rua Augusta em São Paulo, facilmente se encontram estudantes que esticam seus lençóis no calçamento e vendem cópias em DVD de A sociedade do espetáculo [4] a 10 reais, em meio a um amontoado paradoxal de cineastas apologéticos do amor, da política e da cultura espetaculares, ao lado de outros “informais”, que brevemente (e inevitavelmente, segundo a lógica dominante) estenderão, em meio a camisetas de ícones da cultura de massa, o raro retrato de Debord pitando um charuto em plena Paris de 68, estampado em negro numa camiseta listrada com as clássicas cores de um canal de TV sem sinal. Operação “estetizante” semelhante àquela sofrida por Che Guevara ao longo das últimas décadas. [5]
Debord não poderia deixar de prever este cenário, registrado em 1988 nos Comentários sobre a sociedade do espetáculo: “é preciso levar em consideração que, dessa elite que vai se interessar pelo texto, quase a metade é formada pelos que se esforçam por manter o sistema de dominação espetacular.” Debord, inclusive, não poderia deixar de negar este repugnante cenário, suicidando-se em 30 de novembro de 1994 e revelando para a história recente do espetáculo moderno uma de suas mais secretas receitas: a de que só aparece no espetáculo, enquanto se vive, aqueles que se esforçam em manter sua dominação. A notícia de sua morte foi imediatamente para a primeira página de quase toda a imprensa francesa, que prontamente o tratou como um dos mais importantes pensadores do século. Dias depois, a televisão exibiu o documentário Guy Debord, son art et son temps. Em seguida, o filme-documentário A sociedade do espetáculo também foi levado ao ar, pela primeira vez. Visibilidade oportunista esta, visto que, em vida, Debord fora sistematicamente ignorado por esta mesma mídia que ensaiou resgatá-lo depois de sua morte.
A luta contra essa premissa do espetáculo integrado [6] deve acontecer em terrenos, sem dúvida, anti-espetaculares. Qualquer comunicação pública sobre as idéias situacionistas é absolutamente falsa se reproduzir a “divisão de tarefas” entre especialistas que falam e espectadores que escutam; se reproduzir a subcomunicação generalizada do espetáculo; se participar enquanto ventríloquo de um poder absoluto em seu sistema de “linguagem sem resposta”. (Sde, p. 127) Novas pesquisas devem ser desenvolvidas, no sentido de recuperar a real linguagem da contradição, dissolvida nestes tempos entre tristes pseudo-jogos de não-participação, comunidades virtuais e encontros espetaculares. Tal projeto deve buscar uma linguagem que seja dialética tanto na forma quanto no conteúdo: Não deve ser “uma negação do estilo, mas o estilo da negação”. (Sde § 204)

Araraquara, 01 de maio de 2008.

Notas:

1. Centros culturais de bancos e empresas de telefonia celular, universidades privadas e públicas privatizadas, fundações empresariais, ong’s e sofás de programas de auditório.

2. “Situacionismo: Vocábulo sem sentido, abusivamente forjado por derivação do termo anterior (situacionista). Não existe situacionismo, o que significaria uma doutrina de interpretação dos fatos existentes. A noção de situacionismo foi evidentemente elaborada por anti-situacionistas.” (Definições, Internacional Situacionista n.1, 1958)

3. O filósofo belga Raoul Vaneigem fez parte da Internacional Situacionista entre 1961 e 1970. Colaborou com Guy Debord no desenvolvimento da crítica situacionista da vida cotidiana e escreveu, entre outras obras, A arte de viver para as novas gerações, publicado na França em 1967 e no Brasil em 2002.

4. La Société Du Spetacle, Paris, 1973 (Simar Films). Filme-documentário de Debord que sintetiza os principais aforismos de sua obra homônima, o livro A sociedade do espetáculo, de 1967.

5. Se o assalto parisiense aos céus de 68 é tão importante para a história do séc. XX quanto a revolução cubana, por que a imagem de Debord (ao contrário de suas idéias, como vimos) ainda resiste no interior das tavernas e não atinge o grau de veiculação massivo e gratuito pelo qual a imagem de Che fora sistematicamente submetida pela economia espetacular mercantil? Certamente não é pela contestação duvidosa de que o “ilustre revolucionário” argentino seria mais “fotogênico” do que o “anti-ilustre revolucionário” francês.

6. O “espetáculo integrado” decorre da fusão entre as formas “concentrada” (o regime soviético) e “difusa” (o capitalismo ocidental) de espetáculo, dominantes até o período próximo à queda do muro de Berlim, em 1989. Essa análise é feita por Debord nos Comentários sobre a sociedade do espetáculo (1988).

Tese190
Grupo autônomo de investigação sobre o fim da vanguarda, anunciado pelo situacionista Guy Debord na tese 190 do livro A sociedade do espetáculo, de 1967.

tesecentoenoventa@gmail.com

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