A EVOLUÇÃO DA VIDA










Stephen J. Gould

Alguns criadores anunciam suas invenções com pompa e circunstância. Deus proclamou “Fiat lux” e inundou de brilho seu novo universo. Outros fazem grandes descobertas em disfarces modestos, como fez Charles Darwin ao definir seu novo mecanismo de causalidade evolutiva em 1859. “Dei a esse principio, pelo qual cada minúscula variação, se útil, é preservada, o nome de Seleção Natural”.

A seleção natural é uma teoria imensamente poderosa e, apesar disso, maravilhosamente simples, que tem resistido de forma notável a intensos e implacáveis testes e escrutínios há 135 anos. Em essência, a seleção natural localiza o mecanismo da mudança evolutiva em uma “luta” dos organismos pelo sucesso reprodutivo, levando a uma melhor adequação das populações a ambientes que se modificam. (A luta é, frequentemente, uma descrição metafórica, não implicando necessariamente combate explicito ou armas de fogo. Entre as táticas para o sucesso reprodutivo estão varias atividades não bélicas, como o acasalamento mais precoce e mais freqüente, ou melhor cooperação entre os parceiros para a criação dos filhos). A seleção natural é, portanto, um principio de adaptação local, não de avanço ou progresso geral.

Por mais poderosa que possa ser como principio, a seleção natural não é a única causa da mudança evolutiva (e pode, em muitos casos, ser obscurecida por outras forças). Esse ponto precisa ser enfatizado, porque a aplicação equivocada comum da teoria da evolução supõe que a explicação biológica pode ser igualada a criação de motivos, frequentemente especulativos e conjeturais, sobre o valor adaptativo de qualquer característica em seu ambiente natural (a agressividade humana como positiva para a caça, a música e a religião como positivas para a coesão tribal, por exemplo). O próprio Darwin enfatizou muito a natureza multifatorial da mudança evolutiva e advertiu contra a confiança excessivamente centrada na seleção natural, fazendo a seguinte afirmação em lugar de máximo destaque, bem no final de sua introdução: “Estou convencido de que a Seleção Natural foi o mais importante – embora não o único – meio de modificação”.

· Realidade versus Presunção

A seleção natural não é plenamente suficiente para explicar a mudança evolutiva por dois motivos. Primeiro, muitas outras causas são fundamentais, especialmente em termos de organizacão biológica acima e também abaixo do tradicional enfoque darwiniano nos organismos e seus esforços para serem bem sucedidos em termos de reprodução. No nível mais baixo de substituição nos pares de base individuais de DNA, na verdade a mudança é muitas vezes neutra e portanto aleatória. Em níveis mais altos, que envolvem espécies ou faunas inteiras, o equilíbrio pontuado pode produzir tendências evolutivas pela seleção de espécies baseadas em seus índices de origem e extirpação, ao passo que as extinções em massa apagam partes importantes das biotas, por motivos não relacionados a lutas pela adaptação das espécies constitutivas em épocas “normais” entre esses eventos.

Em segundo lugar, e este será o enfoque deste artigo, independentemente do grau de adequação de nossa teoria geral da mudança evolutiva, também ansiamos por documentar e entender a verdadeira trajetória da historia da vida. Sem duvida, a teoria é relevante para explicar a trajetória (nada nela pode ser inconsistente com a boa teoria, e a teoria pode prever determinados aspectos gerais do padrão geológico da vida). Mas a trajetória real é sub-determinada em grande medida por nossa teoria geral da evolução da vida. Esse ponto precisa ser mais aprofundado, já que se trata de um aspecto central (embora negligenciado) da complexidade do mundo. As redes e cadeias de eventos históricos são tão intrincadas, tão imbuídas de elementos caóticos e aleatórios, tão impossíveis de serem repetidas em seu complexo conjunto de objetos singulares (e que interagem singularmente), que os modelos padronizados da simples previsão e replicação não se aplicam aqui.

A história pode ser explicada, com rigor satisfatório se as evidências forem adequadas, depois que uma seqüência de eventos se desenrola, mas não pode ser prevista com nenhuma precisão. Pierre-Simon Laplace, ecoando o crescente e confiante determinismo do final do século 18, disse certa vez que seria capaz de especificar todos os estados futuros se soubesse a posição e o movimento de todas as partículas do Cosmos em dado momento, mas a natureza da complexidade universal estraçalha esse sonho quimérico. A história inclui caos em demasia, e é extremamente dependente de diferenças mínimas e incomensuráveis nas condições iniciais, que levam a resultados radicalmente divergentes causados por disparidades insignificantes e vetadas ao conhecimento nos pontos iniciais. E a historia inclui contingências demais; os resultados atuais são moldados por longas cadeias de estados antecedentes imprevisíveis, e não determinados – como geralmente se supõe – pelas eternas leis da Natureza.



O Homo sapiens não apareceu na Terra, há apenas um segundo geológico, porque a teoria evolutiva prevê esse resultado com base no enredo do progresso e crescente complexidade neurológica. Em vez disso, podemos dizer que o surgimento dos seres humanos foi um resultado fortuito de milhares de eventos encadeados, dos quais qualquer um poderia ter ocorrido de forma diferente, encaminhando a história para um trajeto alternativo que não teria levado a consciência. Para citar apenas quatro entre inúmeros casos: (1) Se nossa insignificante linhagem não estivesse entre os poucos sobreviventes da primeira radiação da vida animal os poucos sobreviventes da primeira radiação da vida animal multicelular durante a explosão cambriana de 530 milhões de anos atrás, nenhum vertebrado teria habitado a Terra. (Apenas um membro de nosso filo dos cordados, o gênero Pikaia, foi encontrado entre esses primeiros fósseis. Essa pequena e simples criatura aquática, demonstrando sua ligação conosco porque possui uma notocorda, ou corda enrijecedora dorsal, está entre os mais raros fósseis de Burgess Shale, nossa fauna cambriana mais bem preservada.) (2) Se um pequeno e pouco promissor grupo de peixes com nadadeiras lobuladas não tivesse desenvolvido o esqueleto de suas nadadeiras com um forte eixo central capaz de suportar peso fora da água, os vertebrados talvez nunca tivesse se tornado terrestres. (3) Se um grande corpo extraterrestre não tivesse se chocado contra a Terra há 65 milhões de anos, talvez os dinossauros ainda fossem dominantes e os mamíferos insignificantes (a situação que prevaleceu durante os 100 milhões de anos anteriores). (4) Se uma pequena linhagem de primatas não tivesse desenvolvido postura ereta nas ressecadas savanas da África há cerca de apenas 2 a 4 milhões de anos, nossos ancestrais poderiam ter terminado em uma linhagem de macacos que, como os chimpanzés e gorilas hoje em dia, teriam se tornado ecologicamente marginais e provavelmente estariam fadados a extinção, apesar de sua notável complexidade comportamental.

Portanto, para compreender os eventos e as generalidades da trajetória da vida, devemos ir além dos princípios da teoria evolutiva e fazer um exame paleontológico dos padrões contingentes da história da vida em nosso planeta – a única versão realizada entre milhões de alternativas plausíveis que por acaso não se concretizaram. Essa visão da história da ávida é radicalmente contrária aos modelos convencionais deterministas da ciência ocidental, minando as mais profundas tradições sociais e esperanças psicológicas da cultura ocidental em uma história que culmina nos humanos como a expressão mais elevada da vida e os supostos guardiões da Terra.

A ciência pode entender os fatos da Natureza e realmente se esforça para isso, mas toda ciência tem um embasamento social e todo cientista registra “certezas” dominantes, mesmo quando almeja a máxima objetividade. O próprio Darwin, nas últimas linhas de A Origem das Espécies, expressou mais uma preferência social vitoriana do que um registro da Natureza ao escrever: “Como a seleção natural trabalha unicamente por e para o bem de cada ser, todos os dons físicos e mentais tenderão a progredir na direção da perfeição”.

A trajetória da vida certamente inclui muitas características previsíveis com base nas leis da Natureza, mas esses aspectos são muito amplos e gerais para fornecer a “justiça” que buscamos a fim de validar os resultados particulares da evolução – rosas, cogumelos, pessoas e assim por diante. É de causar pouca surpresa, por exemplo, que, dadas às leis da gravidade, os maiores vertebrados marítimos (as baleias) excedam em tamanho os maiores animais terrestres (elefantes hoje em dia, dinossauros no passado) que, por sua vez, são muito maiores que os mais volumosos vertebrados voadores que já existiram (os pterossauros do mesozóico).

Leis ecológicas previsíveis governam a estruturação das comunidades por princípios de fluxo de energia e termodinâmica (mais biomassa na presa do que nos predadores, por exemplo). As tendências evolutivas, uma vez iniciadas, podem ter previsibilidade local (“corridas armamentistas” em que tanto predadores quanto presas aperfeiçoam defesas e armas, por exemplo – um padrão que Geerat J. Vermeij, da Universidade da Califórnia em Davis, chamou de “escalada” e documentou no aumento da força tanto das garras dos caranguejos quanto nas conchas de suas presas gastrópodes ao longo do tempo). Mas as leis da Natureza não nos contam por que existem caranguejos e caramujos, por que os insetos dominam o mundo multicelular e por que os vertebrados, e não as persistentes algas, existem como a forma de vida mais complexa da Terra.

Em relação à visão convencional da história da vida como um processo no mínimo previsível de avanço gradual da complexidade ao longo do tempo, três elementos do registro paleontológico destacam-se como oposição e devem, portanto, funcionar como temas organizadores até o final desde artigo: a constância de uma complexidade modal ao longo da história da vida; a concentração de eventos importantes em surtos breves, entremeados por longos períodos de relativa estabilidade; e o papel das imposições externas, principalmente as extinções em massa, no rompimento dos padrões das épocas “normais”. Esses três elementos, combinados com termas mais gerais de caos e contingência, exigem uma nova estrutura para a conceitualização e o delineamento da história da vida, e este artigo termina, portanto, com sugestões para uma iconografia diferente da evolução.

· A Mentira do “Progresso”

O principal fato paleontológico sobre as origens da vida aponta para a previsibilidade no início e muito pouco para as trajetórias particulares posteriores. A Terra tem 4,6 bilhões de anos, mas as mais antigas rochas datam de cerca de 3,9 bilhões de anos, porque a superfície da Terra se fundiu no inicio de sua história, como conseqüência de um bombardeio de grandes quantidades de poeira cósmica durante a coalescência do sistema solar e também do calor gerado pela destruição radioativa de isótopos de vida curta. Essas rochas mais antigas foram muito metamorfoseadas pelo calor e pela pressão subseqüente para preservarem fósseis (embora alguns cientistas interpretem a proporção de isótopos de carbono nessas rochas como sinal de produção orgânica). As rochas mais antigas suficientemente intactas para reter fósseis celulares – sedimentos africanos e australianos datados de 3,5 bilhões de anos – de fato preservam células procarióticas (bactérias e cianófitas) e estromatólitos (sedimentos capturados e presos por essas células em águas marinhas rasas). Portanto, a vida na Terra desenvolveu-se rapidamente e é tão antiga quanto poderia ser. Esse fato por si parece indicar uma inevitabilidade, ou ao menos uma previsibilidade, para a origem da vida a partir dos componentes químicos originais da atmosfera e do oceano.

Ninguém pode duvidar que criaturas mais complexas surgiram depois desse inicio procariótico – primeiro células eucarióticas, talvez há cerca de 2 bilhões de anos, depois animais multicelulares, cerca de 600 milhões de anos atrás, com transmissão das formas mais complexas entre os animais, passando de invertebrados para vertebrados marinhos e, finalmente (se desejarmos, mesmo que seja por bairrismo, brindar a arquitetura neural como critério principal), para répteis, mamíferos e humanos. Essa é a seqüência representada nas velhas ilustrações e textos como “era dos invertebrados” seguida pela “era dos peixes”, “era dos répteis”, “era dos mamíferos” e “era do homem” (para acrescentar o antigo viés do gênero a todos os outros preconceitos implicados nessa seqüência).

Não nego os fatos do parágrafo anterior, mas quero argumentar que nosso desejo convencional de ver a história como progressiva e de enxergar os humanos como previsivelmente dominantes distorceu bastante nossa interpretação sobre a trajetória da vida, colocando erroneamente em posição central um fenômeno um tanto secundário que surge apenas como conseqüência lateral de um ponto de partida fisicamente restrito. A característica mais notável da vida tem sido a estabilidade de seu modo bacteriano, do inicio dos registros fósseis até hoje e, com quase toda a certeza, por todo o futuro enquanto a Terra subsistir. Trata-se realmente da “era das bactérias” – como foi no início, é agora e sempre será.

Por motivos relacionados à química da origem da vida e a física da auto-organização, os primeiros seres vivos surgiram no limite inferior da complexidade concebível e preservável da vida. Chamemos esse limite inferior de “parede esquerda” em uma arquitetura da complexidade. Como existe tão pouco espaço entre a parede esquerda e os primeiros modos bacterianos de vida no registro fóssil, há apenas uma direção para crescimento futuro – rumo a maior complexidade, à direita. Assim, de vez em quando, uma criatura mais complexa se desenvolve e estende a faixa da diversidade da vida na única direção disponível. Em termos técnicos, a distribuição da complexidade desloca-se para a direita por meio dessas adições ocasionais.

Mas as adições são raras e episódicas. Elas nem chegam a constituir uma série evolutiva, mas formam uma seqüência de incongruentes e variados grupos taxonômicos relacionados de forma longínqua, em geral representados como célula eucariótica, medusa, trilobita, nautilóide, euripterídeo (parente avantajado do caranguejo-ferradura), peixe, anfíbio com o Eryops, dinossauro, mamífero e ser humano. Essa seqüência não pode ser interpretada com a principal ou tendência da história da vida. É melhor pensar em uma criatura ocasional chegando aos trambolhões a região vazia a direita do espaço da complexidade. Ao longo de todo esse tempo, o modo bacteriano cresceu e manteve sua posição constante. As bactérias representam o grande sucesso da história da trajetória da vida. Elas ocupam o domínio mais amplo de ambientes e possuem variabilidade bioquímica maior do que qualquer outro grupo. Elas são adaptáveis, indestrutíveis e surpreendentemente diversificadas. Não podemos nem imaginar como uma intervenção antropogênica poderia causar sua extinção, embora nos preocupemos com o impacto que causamos sobre quase todas as outras forma de vida. O número de células de Escherichia coli no intestino de cada ser humano excede o número de humanos que jamais viveram no planeta.

É possível admitir que a complexificação da vida como um todo represente uma pseudotendência baseada na restrição da parede esquerda, mas ainda assim defender a idéia de que a evolução dentro de alguns grupos favorece de forma diferencial a complexidade, quando a linhagem fundadora começa a uma distância suficiente da parede esquerda para permitir o movimento em ambas as direções. Testes empíricos dessa interessante hipótese estão só começando (à medida que o interesse pelo assunto cresce entre os paleontólogos), e ainda não existem casos suficientes para que seja feita uma generalização. Mas os dois primeiros estudos – de Daniel W. McShea, da Universidade do Michigan, sobre vertebrados mamíferos, e de George F. Boyajian, da Universidade da Pensilvânia, sobre linhas de sutura dos amonitas – demonstram que nenhuma tendência evolutiva favorece a complexidade.

Além disso, quando consideramos que, para cada modo de vida envolvendo complexidade maior, há provavelmente um estilo igualmente vantajoso baseado em maior simplicidade de forma (como frequentemente encontrado nos parasitas, por exemplo), então a evolução preferencial na direção da complexidade parece improvável a priori. Nossa impressão de que a vida se desenvolve rumo a uma complexidade maior é provavelmente apenas um preconceito inspirado em um enfoque bairrista de nós mesmos, do qual também decorre o excesso de atenção que concentramos em criaturas que se tornam mais complexas, ao passo que ignoramos outras tantas linhagens que se adaptam igualmente bem ao se tornarem mais simples em sua forma. O parasita morfologicamente degenerado, a salvo em seu hospedeiro, tem tanta perspectiva de ser bem-sucedido em termos de evolução quanto seu parente magnificamente elaborado que luta com as pedradas e flechadas do feroz destino em um árido mundo externo.

· Degraus, não Rampas

Mesmo que a complexidade seja apenas um desvio da parede esquerda limitante, poderíamos encarar as tendências nessa direção como mais previsíveis e características da trajetória da vida como um todo caso os incrementos em complexidade tivesse acontecido de forma persistente e gradualmente cumulativa ao longo do tempo. Mas nada em relação à história da vida é mais estranho em relação a essa expectativa comum (e falsa) que o padrão real de estabilidade ampliada e movimentos episódicos rápidos, como revelado no registro fóssil.

A vida permaneceu quase exclusivamente unicelular durante os primeiros cinco sextos de sua história – desde os primeiros fósseis registrados há 3,5 bilhões de anos até os primeiros animais multicelulares bem documentados menos de 600 milhões de anos atrás. (Algumas algas multicelulares simples evoluíram há mais de 1 bilhão de anos, mas esses organismos pertencem ao reino vegetal e não tem ligação genealógica com os animais). Esse longo período de vida unicelular inclui, com certeza, a transição vitalmente importante de simples células procarióticas sem organelas para células eucarióticas com núcleos, mitocôndrias e outras complexidades da arquitetura intracelular – mas não há registro de organização multicelular animal por 3 bilhões de anos. Se a complexidade é assim tão boa, e a multicelularidade representa sua fase inicial, na opinião corrente, então a vida com certeza levou um bom tempo para dar esse passo crucial. Essas demoras constituem fortes evidências contra o progresso geral como o principal tema da história da vida, mesmo que possam ser explicadas de forma plausível pela falta de oxigênio atmosférico ao longo da maior parte do período pré-cambriano, ou pela incapacidade da vida unicelular de atingir alguns limiares estruturais que atuam como pré-requisitos para a multicelularidade.

Mais curioso ainda é que todos os principais estágios da organização da arquitetura multicelular da vida animal ocorreram em um curto período, que começa há menos de 600 milhões de anos e termina cerca de 530 milhões de anos atrás – e os passos dessa seqüência também são descontínuos e episódicos, e não gradualmente cumulativos. A primeira fauna, batizada de Ediacara em homenagem ao local da Austrália onde foi achada inicialmente, mas agora encontrada em rochas de todos os continentes, consiste em folhas altamente achatadas, lâminas e pequenos círculos agrupados. A natureza da fauna de Ediacara é atualmente objeto de intensa discussão. Essas criaturas não parecem ser simples precursoras de formas posteriores. Elas podem constituir um experimento isolado e fracassado da vida animal, ou representar toda uma faixa de organização diploblástica (com duas camadas), da qual o moderno filo Cnidária (corais, medusas e seus aliados) permanece como um remanescente pequeno e bastante alterado.

De qualquer forma, elas aparentemente morreram muito antes de a biota cambriana ter se desenvolvido. O Cambriano então começou com um conjunto de pedaços e fragmentos, cuja tentativa de interpretação é bastante frustrante, chamado de “Pequena Fauna de Conchas”. O principal movimento posterior, que começou cerca de 530 milhões de anos atrás, constitui a famosa Explosão Cambriana, durante a qual todos os modernos filos da vida animal – com exceção de um – fizeram sua primeira aparição no registro fóssil. (Anteriormente, os geólogos haviam calculado que esse evento teria durado até 40 milhões de anos, mas um elegante estudo, publicado em 1993, claramente restringe esse período de florescimento filético a meros 5 milhões de anos.) Os briozoários, grupo de organismos marinhos sésseis e coloniais, não surgem antes do inicio do período seguinte, o Ordoviciano, mas essa aparente demora pode ser produto do fracasso em descobrir representantes Cambrianos.

Não sabemos por que a Explosão Cambriana conseguiu estabelecer todos os principais desenhos anatômicos tão rapidamente. Uma explicação externa, baseada na ecologia, parece atraente: a Explosão Cambriana representa um primeiro preenchimento do “barril ecológico” de nichos para organismos multicelulares, e todas as experiências encontraram um espaço para ocupar ali. O barril nunca mais se esvaziou. Mesmo as grandes extinções em massa pouparam algumas espécies dentro de cada papel principal, e sua ocupação do espaço ecológico veta a oportunidade para novidades fundamentais. Mas uma explicação interna, baseada na genética e no desenvolvimento, também parece necessária como complemento: os primeiros animais multicelulares podem ter mantido uma flexibilidade para modificações genéticas e a transformações embriológicas que ficou grandemente reduzida à medida que os organismos “se prenderam” a um conjunto estável e bem-sucedido de projetos.

De qualquer forma, esse período inicial de flexibilidade interna e externa gerou um número de variantes de anatomias dos invertebrados que pode ter excedido (em apenas alguns milhões de anos de produção) todo o conjunto das formas animais de todos os ambientes da Terra atual (depois de mais de 500 milhões de anos de tempo adicional para maior expansão). Os cientistas estão divididos em relação a essa questão. Alguns afirmam que a variabilidade anatômica dessa explosão inicial excedeu a da vida moderna, já que muitos dos primeiros experimentos se extinguiram e não surgiram novos filos. Mas os cientistas que se opõem mais radicalmente a essa visão admitem que a diversidade cambriana se igualou a atual – portanto, até a opinião mais cautelosa sustenta que 500 milhões de anos de oportunidade não expandiram a variabilidade cambriana, atingida em apenas 5 milhões de anos. A explosão cambriana foi o mais notável e perturbador evento na história da vida.

· Sorte Cega

Além disso, não sabemos por que a maioria dos primeiros experimentos morreu, ao passo que alguns sobreviveram para se tornar nossos filos modernos. É tentador dizer que os vitoriosos venceram por causa de uma maior complexidade anatômica, uma melhor adequação ecológica ou alguma outra característica da luta darwiniana convencional. Mas não se reconhecem traços em comum entre os vitoriosos, e é preciso considerar a alternativa radical de que cada um desses primeiros experimentos recebeu pouco mais do que o equivalente a um bilhete da maior loteria que jamais foi jogada no planeta – e que cada linhagem sobrevivente, inclusive nosso próprio filo de vertebrados, habita a Terra atualmente mais por um lance de sorte do que por qualquer luta previsível pela existência. A história da vida animal multicelular pode ser mais a de uma grande redução das possibilidades iniciais, com a estabilização dos afortunados sobreviventes, do que um conto convencional de expansão ecológica estável e progresso morfológico em direção a complexidade.

Finalmente, esse padrão de longa estase, com mudanças concentradas em rápidos episódios que estabelecem novos equilíbrios, pode ser bastante universal em várias escalas de tempo e magnitude, formando um tipo de padrão fractal de auto-semelhança. De acordo com o modelo do equilíbrio pontuado, tendências dentro das linhagens ocorrem em episódios acumulados de especiação geologicamente instantânea, e não por mudança gradual dentro de populações continuas (mais como subir uma escada do que rolar uma bola ladeira acima).

Mesmo se a teoria evolutiva implicasse uma direção interna potencial para a trajetória da vida (embora fatos e argumentos anteriores neste artigo lancem dúvidas sobre essa alegação), a imposição ocasional de uma mudança rápida e potencial, talvez até catastrófica, no ambiente, teria intervindo para evitar o padrão. Essas mudanças ambientais desencadeiam a extinção em massa de uma grande porcentagem das espécies da Terra e podem desviar a tal ponto qualquer direção interna e alterar tanto a trajetória que o padrão final da história da vida parece mais caprichoso e concentrado em episódios do que regular e direcional.

As extinções em massa foram reconhecidas desde a aurora da paleontologia; as principais divisões da escala de tempo geológico foram estabelecidas em limites marcados por esses eventos. Mas até o novo despertar do interesse que ocorreu no final da década de 1970, a maioria dos paleontólogos tratava as extinções em massa apenas como intensificação de eventos comuns, que levavam (no máximo) a uma aceleração de tendências que permeiam os tempos normais. Nessa teoria gradualista da extinção em massa, esses eventos realmente levaram alguns milhões de anos para se desenrolar (com a aparência de repentino interpretada como conseqüência de um registro fóssil imperfeito), e apenas fizeram o comum acontecer mais rápido (competição darwiniana, por exemplo, levando a uma substituição ainda mais eficiente de formas menos adaptadas por formas superiores).

A reinterpretação da extinção em massa como elemento central da trajetória da vida, radicalmente diferente nos efeitos que causa, começou com a apresentação de dados feita por Luis e Walter Alvarez em 1979, indicando que o impacto de um grande objeto extraterrestre (eles sugeriram um asteróide de 7 a 10 km de diâmetro) teria desencadeado a última grande extinção, no limite entre Cretáceo e Terciário, 65 milhões de anos atrás. Embora a hipótese dos Alvarez tenha inicialmente recebido tratamento muito cético da parte dos cientistas (reação adequada para explicações anti-convencionais), o caso parece agora praticamente provado pela descoberta da Chicxulub, uma cratera de tamanho e idade condizentes com a hipótese, localizada na península de Yucatán, no México.

Esse redespertar de interesse também inspirou os paleontólogos a tabular os dados da extinção em massa de forma mais rigorosa. Um trabalho feito por David M. Raup, J. J. Sepkoski Jr. e David Jablonski, da Universidade de Chicago, estabeleceu que a vida animal multicelular vivenciou cinco grandes extinções em massa (final do Ordoviciano, Devoniano tardio, Permiano terminal, final do Triássico e final do Cretáceo) e muitas pequenas extinções em massa durante sua história de 530 milhões de anos. Não há evidencias claras de que algum, exceto o último desses eventos, tenha sido desencadeado por um impacto catastrófico, mas um estudo cuidadoso como esse leva a conclusão geral de que as extinções em massa eram mais freqüentes, mais rápidas, mais extensas em magnitude e mais variadas em efeitos do que os paleontólogos tinham anteriormente percebido. Essas quatro propriedades abarcam as implicações radicais da extinção em massa para o entendimento da trajetória da vida como mais contingente e aleatória do que previsível e direcional.

As extinções em massa não são aleatórias no impacto que tem sobre a vida. Algumas linhagens sucumbem e outras sobrevivem como resultado lógico baseado na presença ou ausência de traços desenvolvidos. Mas se a causa desencadeadora da extinção for repentina e catastrófica, as razões para vida ou morte podem ser aleatórias em relação ao valor original dos traços-chave quando se desenvolveram pela primeira vez nas lutas darwinianas dos tempos normais. Esse modelo de extinção em massa “com regras diferentes” imprime a trajetória da vida um caráter idiossincrático e imprevisível, baseado na alegação evidente de que as linhagens não podem antecipar futuras contingências de tal magnitude e diferente operação.

Para citar dois exemplos da extinção do Cretáceo-Terciário, desencadeada por um impacto há 65 milhões de anos: em primeiro lugar, um estudo publicado em 1986 observou que as diatomáceas sobreviveram à extinção muito melhor que outros plânctons unicelulares (principalmente o coletos e os radiolários). Esse estudo descobriu que muitas diatomáceas tinham desenvolvido uma estratégia de dormência por encestamento, talvez para sobreviver durante períodos sazonais de condições desfavoráveis (meses de escuridão para espécies polares, que teriam sido fatais para essas células que fazem fotossíntese; disponibilidade esporádica de sílica, necessária para a construção de seus esqueletos). Outras células planctônicas não desenvolveram nenhum mecanismo de dormência. Se o impacto cretáceo terminal produziu uma nuvem de poeira que bloqueou a luz por vários meses ou por mais tempo (uma idéia popular sobre o “cenário de morte” na extinção), então as diatomáceas podem ter sobrevivido como resultado fortuito de mecanismos de dormência desenvolvidos para funções inteiramente diferentes, de enfrentar secas sazonais em tempos comuns. As diatomáceas não são superiores aos radiolários ou a outros plânctons que sucumbiram em números muito maiores – simplesmente tiveram a sorte de contar com uma característica favorável, desenvolvida por outros motivos, que encorajaram a passagem pelo impacto e por suas seqüelas.

Em segundo lugar, todos nós sabemos que os dinossauros sucumbiram no final do evento cretáceo e que, portanto, os mamíferos reinam hoje no mundo vertebrado. A maioria das pessoas supõe que os mamíferos prevaleceram nesses tempos difíceis por alguma questão de superioridade geral em relação aos dinossauros. Mas essa conclusão parece bastante improvável. Os mamíferos e dinossauros coexistiram por 100 milhões de anos, e os mamíferos se conservaram do tamanho de ratos ou até menores, não fazendo nenhum movimento evolutivo para destituir os dinossauros. Nunca foi apresentado um bom argumento a favor da prevalência dos mamíferos por superioridade geral, e a causalidade parece muito mais provável. Um argumento plausível é o de que os mamíferos podem ter sobrevivido em parte como resultado de seu tamanho pequeno (com uma população consequentemente muito maior e, portanto, muito mais resistente à extinção, e menor especialização ecológica, tendo mais lugares onde se esconder, por assim dizer). A pequena dimensão pode não ter sido em absoluto uma adaptação positiva dos mamíferos, mas mais um sinal da incapacidade de invadir o domínio dos dinossauros. No entanto, essa característica negativa em tempos normais pode ser o principal motivo de sobrevivência dos mamíferos e um pré-requisito para que eu escreva e você leia este artigo.

Sigmund Freud frequentemente observava que as grandes revoluções da história da ciência tinham uma característica comum, até irônica: elas derrubam a arrogância humana, de um pedestal depois de outro, sobre nossas convicções em relação a nossa própria importância. Nos três exemplos apresentados por Freud, Copérnico deslocou nosso lar do centro para a periferia; Darwin então nos relegou a “descender de um mundo animal” e, finalmente (em uma das afirmações menos modestas de toda a história intelectual), o próprio Freud descobriu o inconsciente e detonou o mito da mente inteiramente racional.

· Resolução Incompleta

Nesse sentido sábio e crucial, a revolução darwiniana permanece deploravelmente incompleta porque, apesar de a humanidade pensante aceitar o fato da evolução, a maioria de nós ainda não está disposta a abandonar a visão consoladora de que evolução significa (ou pelo menos incorpora como princípio central) progresso, definido para facilitar o aparecimento de algo como a consciência humana, como praticamente inevitável ou pelo menos previsível. O pedestal não será destruído até que abandonemos o progresso ou a complexificação como princípio central e cheguemos a aventar a forte possibilidade de que o Homo sapiens seja apenas um ramo minúsculo que surgiu tarde no enorme arbusto em forma de árvore da vida – um pequeno broto que certamente não apareceria uma segunda vez se pudéssemos replantar a semente do arbusto para deixá-lo crescer novamente.

Os primatas são animais visuais, e os quadros que desenhamos revelam nossas convicções mais profundas e exibem nossas limitações conceituais. Os artistas sempre pintaram a história da vida fóssil como uma seqüência que vai dos invertebrados para os peixes, para os primeiros anfíbios terrestres e répteis, para os dinossauros, para os mamíferos e, finalmente, para os humanos. Não há exceções: todas as seqüências pintadas desde o surgimento desse gênero na década de 1850 seguem a mesma convenção.

No entanto, nunca paramos para reconhecer os preconceitos quase absurdos que estão codificados nesse modelo universal. Nunca aparece uma cena de outro invertebrado após o desenvolvimento dos peixes, mas os invertebrados não foram embora e nem pararam de evoluir! Depois do surgimento dos répteis terrestres, nenhuma cena posterior mostra um peixe (quadros oceânicos posteriores mostram apenas répteis que retornam a água, como o ictiossauro e o plesiossauro). Mas os peixes não pararam de evoluir depois que uma pequena linhagem conseguiu invadir a Terra. Na verdade, o principal evento da evolução dos peixes, a origem e ascensão ao poder dos teleósteos, ou modernos peixes com ossos, ocorreu durante a época dos dinossauros e, portanto, nunca é mostrada em nenhuma dessas seqüências – apesar de os teleósteos incluírem mais da metade de todas as espécies de vertebrados. Por que os humanos deveriam aparecer no final de todas as seqüências? Nossa ordem de primatas é antiga entre os mamíferos, e muitas outras linhagens bem-sucedidas surgiram posteriormente.

Não vamos destruir o pedestal de Freud e completar a revolução darwiniana até que encontremos, adotemos e aceitemos outro molde de desenhar a história da vida. J. B. S. Haldane proclamou que a Natureza é “muito mais esquisita do que supomos”, mas esses limites podem ser somente amarras socialmente impostas, e não restrições inerentes a nossa neurologia. Novos ícones podem romper as amarras. Árvores – ou melhor, arbustos com opulentos e numerosos ramos – e não escadas e seqüências são a chave dessa transição conceitual.

Precisamos aprender a representar toda a gama de variações, e não apenas nossa percepção bairrista da minúscula extremidade que corresponde às criaturas complexas. Precisamos reconhecer que essa árvore pode ter contido um número máximo de galhos perto do inicio da vida multicelular, e que a história subseqüente é, em sua maior parte, um processo de eliminação e sobrevivência afortunada de alguns, e não o contínuo florescimento, progresso e expansão de uma multidão crescente. Precisamos entender que pequenos ramos são brotinhos imperfeitos e frágeis, contingentes, e não metas previsíveis do enorme arbusto que os sustenta. Devemos lembrar a maior afirmação bíblica sobre a sabedoria: “Ela é uma árvore que dá a vida a quem a abraça; feliz é aquele que a ela se apega”.

1 comentários:

http://fendersen.com/EARTH.htm

Nesta versão em inglês há figuras anotadas que acompanham o texto.

22 de janeiro de 2009 às 21:22  

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