"Avanti popolo, alla riscossa
Bandiera rossa, bandiera rossa
Avanti popolo, alla riscossa
Bandiera rossa trionferà"
De uma conhecida música muito cantada nos anos 70


Descobri já há uns tempos atrás que a ministra de educação do Estado Espanhol do recém falecido governo do PP Dona Pilar del Castillo, elegante em seus cinquenta anos, foi militante duma organização esquerdista chamada Bandiera Roja, tendo abandonado esse mundo lá pelos idos de 78. Depois disso tornou-se uma socióloga séria, cientista política reconhecida. O seu doutorado na Universidade de Columbus (Ohio), com uma bolsa da Fundação Fulbright, confirmou, ao que parece, a sua conversão. Tal como Josep Piqué, Anna Birulés e seu marido, o deputado Guillermo Gortázar, fazem parte da nova intelectualidade da direita. Por lá dizem que fazem parte da geração boba, uma mistura de boémios e burgueses, o que a mim me parece quase um elogio, pois estão mais próximos, a meu ver, daquilo que eu imagino serem uns filhos da puta, velha expressão das línguas latinas, que não se refere tanto à mãe que os pariu, do que à sua condição de oportunistas safados, alguém em quem nunca se devia, nem deve, confiar.
A tal Pilar, ex-comunista, trabalhou de forma consequente para fazer aquelas reformas que todos podem imaginar, preocupada com a revalorização do ensino religioso das pobres crianças, não se vá dar o caso de alguma vir a ser ateia, céptica, ou tão só descrente, coisa que ela, como ex-militante da Bandiera Roja, sabe não ser nada bom para a sociedade.
Já conhecemos muitos outros casos, um pouco por todo o mundo, sendo um dos mais famosos o daquele opositor ferrenho da NATO, Javier Solana, que se tornou secretário-geral da dita. Muitos outros comunistas, maoistas e trotsquistas, com um emblema do PSOE na lapela, comeram na mesa dos condes e das marquesas, ou nos seus leitos, nas amenas praias mediterrâneas, em nome da reconciliação nacional e de um mundo melhor. Para eles pelo menos.
Este não é, no entanto, um fenómeno do Estado Espanhol. O mesmo pode ser constatado pela Europa fora, da mesma forma que no resto do mundo. Também por aqui, na velha terrinha, há algumas décadas atrás, milhares de jovens gritaram, atrás de bandeiras vermelhas, contra os males do mundo em que viviam. Os males, esses tinham quase todos na sua origem uma causa bem definida que todos eles tinham aprendido a definir e explicar: o capitalismo. Outros motivos diversos também provocavam sua indignação e ira: o fascismo, os baixo salários, as reformas do ensino, a guerra colonial ou do Vietname, mas todos tinham claro que o mal maior, e fundador da desgraça, que se abatia sobre os explorados e os povos era esse sistema que seus adorados mestres tão bem, e cientificamente, haviam descrito em suas inúmeras obras.
Alguns entre eles eram operários, mas a maioria era, inegavelmente, estudantes liceais e universitários, no activo ou em compasso de espera, seus chefes, um pouco mais velhos, que sabiam de trás para a frente as cartilhas, haviam desertado da tropa, eram refractários ou pelos menos escapuliram de casa dos pais. Nem todos eram iguais: para uns Trotski enfileirava ao lado dos mestres Marx e Lenin, outros achavam que não, só Estaline tinha, de pleno direito, um lugar ao lado dos fundadores. Mao, o grande timoneiro, logo foi acrescentado à galeria por muitos entusiastas. Com tempo, outros tentaram outras variantes, sendo Che, Ernesto Guevara, o das camisolas, o escolhido. Levando em conta a famosa foto de Alberto Korda talvez estivessem mais certos que quaisquer outros sobre os dotes de Guevara, como se vem comprovando nos tempos que correm na indústria da moda. À falta de melhor, uns quantos, como a dupla Espada & Pereira, conhecidos fundadores do pensamento democrático e liberal português, somaram Enver Hoxa aos guias, numa época em que a crise dos grandes timoneiros era já vísivel.
Esses estudantes esquerdistas também tinham uma característica muito comum: eram de origem burguesa, filhos até da classe média e alta, o que permitia a alguns leitores atentos de Freud, darem explicações psicanalíticas para as suas raivas juvenis. O que é certo é que a acreditar nas suas palavras, discursos e berros, eram os verdadeiros representantes do proletariado, uma palavra cientificamente sofisticada que usavam para falar do povo, o que podia ser confirmado pela discreta presença de algum companheiro metalúrgico ou da construção civil nas suas organizações. As referências à necessidade de uma vanguarda, ou seja deles próprios, eram constantes, tal como a evocação do papel fundamental dos dirigentes, eles mesmos, da necessidade de tomar o poder, do exercício da ditadura, condições indispensáveis para uma mudança social. Nos seus grupos aplicavam esses mesmos princípios de autoridade, num exercício coerente entre a teoria e a prática: dirigente era respeitado, pelo menos até cair em desgraça, disciplinavam as bases, exigiam a confissão dos erros, criticavam sistematicamente os outros, auto-flagelavam-se e penitenciavam-se. Tudo em nome da disciplina partidária contra todo o desvio e heresia teológica, a que davam o nome de «concepções oportunistas», mostrando assim serem mais rigorosos que a velha Igreja, que foi aprendendo, com os séculos, a ser branda e a conviver com as fraquezas humanas e com o pecado.
Durante anos cada grupo, pelo seu lado, lutou para construir o verdadeiro Partido, uma luta homérica que gerou o Partido Comunista de Portugal (marxista-leninista), várias variantes com nomes próprios, Movimento para a Reorganização do Partido do Proletariado, o tal MRPP, Organização Comunista Marxista Leninista Portuguesa, mais conhecida por Grito do Povo, Partido Comunista Português Reconstruído, à custa dos esforços históricos do CMLP, CCRML, URML, OCMLP, a União Democrática Popular, etc. É evidente que também havia o MES, a LUAR, PST, LCI, PRP e centenas de outras coisas, umas constituídas por dez, outras por cem, outras por mil militantes e um por cento de dirigentes. Uns mais iluminados e sectários que outros, mas todos eles tendo um arremedo de linha justa, uma representação, mesmo que parcial, dos trabalhadores, e um mítico destino para Portugal e o Mundo. O objectivo imediato de quase todos eles era claro: a Insurreição e a Revolução, um momento mágico onde esses dirigentes confirmariam o seu destino, num futuro radioso em que acreditavam piamente, ou em que convenciam outros, mais ingénuos ou estúpidos, a acreditar.
Os jovens imberbes, seus adeptos, entusiasmavam-se pois só tinham visto coisa semelhante, e tanta fé, na missa do galo ou em Fátima, antes da sua conversão à ciência do marxismo. Quanto aos trabalhadores que iam aparecendo, viam nessas organizações e partidos um outro sentido para as suas existências sofridas ou miseráveis, acreditando que afinal o mundo podia mudar. Mesmo que o que vissem à sua volta os pudesse perfeitamente convencer do contrário.
Dificilmente saberemos o que ia na mente de todos esses amados dirigentes - que iam do secretariado ao comité central, passando por alguns, mais humildes controleiros -, mas dá para desconfiar que já se viam no papel de heróis do povo, comissários de um novo estado, principalmente no momento em que o velho estado novo se foi quando uma revolução num Abril de 74, que poucos haviam esperado, mostrou que o horizonte amanheceu vermelho. Aos vinte e poucos anos ou trinta, já era possível sonhar com o impossível, um cargo oficial, uma dignidade estatal ou, quem sabe, um ministério ou uma secretaria qualquer, mesmo que tivessem esse nome revolucionário de comissariado num país novo, como eles.
Cada um desses dirigentes, teve possivelmente a sua fantasia e o seu sonho, as multidões que ocupavam as ruas também tiveram muitos mas, infelizmente, a maioria deles delineados pelas aspirações dos seus chefes que, já experimentados em teoria e em estratégia, saíam das suas clandestinidades, verdadeiras ou de opereta, ou dos seus exílios estudantis em Paris e Genebra para encabeçar a luta das massas. Cada semana e mês desses anos de 74 a 76 foram vividos com expectativa pelos combativos dirigentes, mas o Poder, custava a deixar-se agarrar por esses jovens ansiosos. Cada vez que se aproximavam, mais se afastava deles, os mestres do poquer, em Washinghton, Moscovo e Bona, e seus pupilos nacionais, do PCP, PS e PPD, estavam a elevar a parada em cada lance, embora predominasse o blufe. Os gaiatos queriam jogar, mas ninguém lhes dava cartas e quando ameaçavam roubá-las, quase sempre recebiam um empurrão condescendente, dos mais entradotes: Cunhal, Soares e Sá Carneiro, que tinham já a experiência para saber que quem mandava nesse baralho viciado não eram eles, mas os mestres ausentes que iriam definir o momento da vitória e a quem ela pertenceria.
Quando o fim do jogo ficou claro, no grande blufe de Novembro de 75, os jovens dirigentes avermelhados pelo calor do Verão quente, já tinham aprendido um pouco mais da vida e nesse momento decisivo uns, mais arrojados, bateram com a porta, outros, pé ante pé, saíram sem ruído, deixando para trás, sem saudade, arrependimento ou vergonha, o seu passado feito de palavras grandiosas como povo, proletariado, revolução e comunismo e de algumas más acções como assaltar bancos, roubar e ocultar armas, furtar móveis ao estado, sanear professores e empresários, assaltar embaixadas, ocupar casas e terras, queimar sedes de partidos democráticos etc e tal. Outros mais hesitantes, ou mais lentos em seus reflexos, deixaram arrastar por alguns anos a decisão na ingénua ilusão de que algum sentido havia no seu passado ou de que não poderiam esquecer tudo que leram em tão pouco tempo. Mas, aos poucos, quase todos foram saindo, mais ou menos discretamente, deixando os últimos militantes desanimados e confusos. As grandiosas organizações, e reorganizações, que tinham construído para o proletariado português ao longo de anos foram desaparecendo e, em muitos casos, nem foi preciso apagar a luz, nem fechar as portas, pois suas sedes logo viraram, de novo, bancos, escritórios, cafés e lojas dos trezentos. A raiva de todos eles à burguesia e ao capitalismo, fonte de todos os males, de repente e milagrosamente, esfumou-se revelando-lhes o doce paraíso democrático, da igualdade de oportunidades.
Os caminhos da conversão foram diversos, mas a maioria tornou-se professor universitário, sociólogo, economista, jurista, pois era grande sua bagagem especulativa, seus dotes oratórios e retóricos adquiridos nas suas verborraicas militâncias; alguns escritores e artistas, que transitaram da povolatria para a egolatria; os mais práticos, grandes organizadores do proletariado, optaram por serem comerciantes e gestores bem sucedidos, outros ficaram pelo jornalismo pois as centenas de jornais do povo dos anos 70 foram a escola de muitos deles. As carreiras foram-se definindo e os velhos partidos, que para uns tinham sido inimigos odiosos atacados a ferro e fogo, mas que em outros casos eram velhos aliados da gloriosa luta anti-social-fascista, logo abriram suas portas de par em par para recebê-los festivamente, pois como era bem sabido pelos conservadores, desde o início do século XX: "incendiário aos 20, bombeiro aos 40", ou por outras palavras, "ninguém melhor que os ex-incendiários para controlar os futuros fogos".
Uns foram para o PS, outros para o PSD, alguns para o PP, outros entraram simultaneamente para alguma sociedade anónima comercial ou futebolística. Uma das prioridades da maioria deles foi dedicarem-se a uma minuciosa revisão das suas biografias pessoais, adequando-as às exigências da confiabilidade democrática. Foi assim que aos poucos se construiram as grandes carreiras do falecido deputado Acácio, do Espada, que era a voz iluminada do povo, Pacheco Pereira, mais maoista que Teng Siao-Ping, Arnaldo, grande timoneiro, Lamego, Saldanha, ex-linha negra, Pedro Batista, assim gritava o povo, Barroso, quase durão, Jorge Coelho, furão do Rato, e outras largas centenas de ex-dirigentes e teóricos do fim do capitalismo, do amanhã radiante, do socialismo, que acabaram a comer na mesa da burguesia neo-democrática ou regressando às suas casas como filhos pródigos. Ou as pequenas carreiras, do Heduíno Gomes, ex-Vilar, agora "homem de direita, conservador e reconvertido ao cristianismo", Vasconcelos, o estrategista das guerras alheias, o tal e qual Ferreira Fernandes, "eu também torturaria", José Fernandes, "por uma guerra ética e democrática" e mais algumas centenas de etc. Evidentemente que o PCP também teve seus arrependidos, os Judas e Zitas Seabras, agora dedicados às obras públicas, mas esses há muito estavam habituado à plasticidade e capacidade táctica, tardo-estalinista, da "aliança com todos os portugueses honrados" e a um comezinho reformismo que não faria espantar ninguém que trocassem uma reforma por outra. Principalmente quando o que estava em causa era a sua própria reforma.
Uma vez ou outra, esses ex-revolucionários vermelhos, fazem expiação pública: "o comunismo foi a mentira do século XX", "o capitalismo é a liberdade", "só a livre empresa nos dará o bem-estar", "a violência é o grande mal", "a democracia é um produto do livre mercado", "no passado fomos idealistas", "não conhecíamos a verdade sobre a China", "fomos generosos", "sacrificamos nossa juventude a lutar pelo povo" ou até como disse o nosso primeiro-ministro, em recente debate parlamentar: «eu só tinha 18 anos...», abrindo assim o campo a todas as justificações biográficas: «mas eu só tinha 19 anos» ou «e eu tinha acabado de fazer 33 anos»...
O argumento enfático definitivo, no entanto, para calar as más línguas é "O MUNDO MUDOU". Uma verdade de La Palisse pois, como todos sabemos, o mundo já havia mudado antes das suas conversões. De facto, nunca parou de mudar desde aquele Big Bang inicial, ou do pecado original, para usar uma imagem mais de acordo com suas fés actuais. O que nos permite concluir que, ao contrário do que dizem as enciclopédias e livros de história, o principal evento dos anos 80, do século XX, não foi a queda do muro de Berlim ou a difusão da micro-informática, nem sequer o retorno do liberalismo, foi sim a repentina conversão de tanto esquerdista às virtudes do sistema capitalista. Talvez seja essa a parte oculta do terceiro segredo de Fátima, de 1917, que ainda faltava revelar. Depois da Rússia, seriam eles os convertidos.
Convertidos?, arrependidos?, ou tão só filhos da puta? É a interrogação pertinente que alguns chatos ainda insistem em colocar hoje, passadas quase três décadas. Não podemos responder peremptoriamente, pois faltam-nos os dados científicos que só nossos camaradas psicólogos, sociólogos e psicanalistas, que andaram pelas organizações esquerdistas desse tempo, podiam ajudar a esclarecer. O problema é que não conseguiram ainda distanciar-se o suficiente quando não foram eles mesmos vítimas do fenómeno para nos dar uma resposta, a nós, os interessados por estas coisas: os que viveram essa época ou todos aqueles que hoje continuam a recusar com asco o capitalismo. Quanto aos milhares de trabalhadores que um dia acreditaram nessas iluminadas figuras, e que regressaram ao seu anonimato, no desemprego ou com empregos precários e recibos verdes, mas, na maioria dos casos, conformados com o seu carrito e cartão multibanco, podem seguir-lhes o rasto na televisão ou em revistas de cunho social como a Caras e dizer: "vês aquele ministro, meu filho, pintávamos paredes juntos quando tinha a tua idade", "Maria, aquele corajoso camarada agora vai administrar alguma coisa no Iraque", "António, a nossa camarada de 74 agora é da Judite, está todos dias nas notícias", "sabes quem agora é deputado do PS, é o grande agitador Batista", "lembras aquele jornalista que ficou com as G3, agora escreve que precisamos de mais segurança...", "quem agora é Governador Civil é aquele camarada que recitava emocionado as poesias do Mao Tsé Tung".
Todos eles ficarão no panteão da nossa memória ao lado de Marx, Engels, Lenine, Trotski, Estaline e Mao, para nunca mais esquecermos que quem trava a luta social tendo por objectivo o Poder, nunca é confiável e que só será possível um outro mundo quando os debaixo forem capazes de cuspir na cara dos candidatos a dirigentes e caminhar autónoma, colectiva e igualitariamente, não esquecendo que é pensando com suas cabeças e duvidando da fé dos iluminados, que algo de novo pode surgir. Para que isso venha a ser realidade um dia ou, pelo menos, para que as várias infâmias travestidas de vermelho que vimos no século XX não sejam mais possíveis, é preciso contar uma história aos nossos filhos, ou aos nossos netos, que deveria iniciar-se assim: "Há muitos, muitos anos atrás, conheci uns filhos da puta com ares de iluminados (ainda hoje fico a pensar, como o Alberto Pimenta se já se nasce filho da puta ou se alguém se torna assim com o tempo), que agora são famosos e comem nas mesas do Poder, conheci também outros que se contentam em mastigar as migalhas que vão caindo da mesa. Vou contar-vos como todos eles começaram as suas carreiras atrás de bandeiras vermelhas..."

Manuel de Sousa

publicado na revista utopia nº17

1 comentários:

"Todos eles ficarão no panteão da nossa memória ao lado de Marx, Engels, Lenine, Trotski, Estaline e Mao, para nunca mais esquecermos que quem trava a luta social tendo por objectivo o Poder, nunca é confiável"

Esta frase mostra apenas o sectarismo mal-informado ou doentio e em todo o caso patético dos anarquistas "clássicos". Seria interessante vê-lo justificar o ter incluído Marx na lista. Mas não é necessário pois sabemos muito bem de que miséria de literatura se alimenta esta gente à hora de lidar com o affaire Marx. Decerto não iriam repetir o argumento anti-semita do mestre Bakunine.

ver por exemplo sobre o assunto:

http://thecommune.wordpress.com/ideas/bakunins-expulsion-from-the-first-international/

http://www.diemer.ca/Docs/Diemer-BakuninvsMarx.htm

22 de fevereiro de 2009 às 13:09  

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