manifesto
E VOCÊ, O QUE FAZ NA VIDA?
O que apresentamos vai contra os até hoje válidos princípios dos Desempregados Felizes, os quais não gostam de começar pela teoria. Preferem, em qualquer caso, a propaganda pelo facto, o delito, e sobretudo o não-facto. O certo é que, não existem resultados credíveis ou outros, de investigação no campo do desemprego feliz, susceptíveis de serem apresentados aqui. Mas, encontramos, pelo menos, algumas explicações, porque os rumores - que já faziam que os Desempregados Felizes gozassem de certa notoriedade secreta - não precisam de mal entendidos. Mal entendidos, incluso, acerca de aspectos fundamentais, quer dizer acerca da felicidade e, também, do desemprego.
Para começar, quando se fala de felicidade, o assunto torna-se, de imediato, escabroso. A felicidade é irresponsável. A felicidade é um sentimento burguês. A felicidade é anti- em qualquer língua e em qualquer povo. E, além disso, como se pode ser feliz tendo em conta a miséria, a violência e as carcaças que agora custam 10 cêntimos ainda que resultem ser pouco mais que insípidas bolas cheias de ar.
Paul Watzlawick já deu uma no cravo ao escrever no seu livro: "A Arte de Amargarmos a Vida":
"Que tal se fossemos absolutamente inocentes do pecado original? Se nada nem ninguém nos pode culpar de colaboração? Não restam dúvidas que, neste caso, somos puras vítimas. Que ninguém se atreva, então, a questionar o meu estatuto de sacrificado ou a pedir que remedeie a minha desgraça. O que me foi infligido por Deus, o mundo, o destino, a natureza, os genes e hormonas, a sociedade, os pais, os parentes, a polícia, os professores, os médicos, os chefes e, todavia pior, pelos amigos, é tão injusto e causa tanta dor que só com o insinuar, que pudesse fazer algo contra, é acrescentar o insulto ao ultraje. E, além disso, não é científico."
Para nos prolongarmos mais sobre este tema, teríamos que chafurdar no lamaceiro da psicologia, e que Deus nos livre disso! Mas, cruzamo-nos com outros argumentos, que são contrários ao afã da felicidade. Diz-se, por exemplo, que o totalitarismo consiste em querer fazer felizes as pessoas contra a sua própria vontade. A respeito disso, não é preciso preocuparmo-nos demasiado: os Desempregados Felizes não são charlatães que pretendam impor alguma forma de felicidade aos demais. No plano programático, vemos as coisas tal como Lautréamont o formulou para si mesmo em 1869:
"Até agora, tem-se descrito a desgraça para inspirar terror e lástima. Vou descrever a felicidade para inspirar o contrário.".
Mas vamos ao que interessa.
O DESEMPREGO: É UM PROBLEMA OU UMA SOLUÇÃO?
TODOS sabemos que já não se pode abolir o desemprego. Se a empresa funciona mal, despedem-se os trabalhadores. Se marcha bem, investe-se na automatização e despede-se da mesma forma. Antes, era precisa mão-de-obra, porque havia trabalho. Agora necessita-se, desesperadamente, de trabalho porque sobra mão-de-obra e ninguém sabe o que fazer com ela, já que as maquinas trabalham mais depressa, melhor e mais barato.
A automatização sempre foi um sonho da humanidade. Há 2300 anos, o Desempregado Feliz, Aristóteles, já dizia:
"Se cada ferramenta pudesse cumprir, por si só, a sua função; se, por exemplo, a agulha do tear pudesse trabalhar sozinha, o mestre não necessitaria de nenhum ajudante e o amo de nenhum escravo."
Hoje, já se realizou este sonho, mas em forma de pesadelo para todos, porque as relações sociais não mudaram tão depressa como a tecnologia. Não obstante, este processo não tem recuo, marcha-atrás possível: robôs e máquinas nunca mais serão substituídos por trabalhadores. E, além disso, quando é necessário ou se pretende uma maior renda, mais-valia, muda-se o trabalho "humano" para países onde a mão-de-obra é mais barata, ou são usados trabalhadores imigrantes muito mal pagos. Semelhante espiral descendente só poderia ser detida pelo restabelecimento da escravidão.
Todo o mundo sabe, mas ninguém o pode dizer. Ao nível oficial - instituições, para-instituições e a própria vitima - lançam-se na "luta contra o desemprego" mas, na realidade, lutam, unicamente, contra os desempregados. Para isso, falsificam as estatísticas, "ocupam" - no sentido militar da palavra - os desempregados, e exercem controlos sem fim para os enfastiar. E, como estas medidas, nunca acabam por convencer, acrescentam a moral e pedem ao desempregado que assuma que é ele que tem a culpa da sua situação, exigindo-lhe provas de "procura activa de trabalho". Tudo para moldar a realidade à propaganda. Mas chega o Desempregado Feliz e diz alto o que todo o mundo já sabe.
"Desemprego" é, desde logo, uma palavra chunga, "inútil", um termo com conotações negativas, a outra face da moeda trabalho. Um desempregado não é mais do que um trabalhador sem trabalho. Não se diz nada acerca desta mesma pessoa como poeta, passeante, pesquisador, respirador. Em público, só se pode falar de falta de trabalho. Só no âmbito privado, sem repórteres, sociólogos ou outros espias presentes, podemos atrever-nos a sermos honestos:
"Despediram-me, filhos da puta! Por fim vou ter tempo para me divertir, ir a festas todas as noites e já não terei de comer à pressa os pratos requentados no microondas e poderei foliar sem entraves."
Deveria superar-se esta separação entre sabedoria privada e mentira pública? Dizem-nos que não é o momento oportuno para criticar o trabalho, que seria uma provocação, que venderíamos pérolas a porcos. Até há vinte anos, os trabalhadores poderiam questionar o seu trabalho
Onde se perdeu a ética do trabalho fica o medo ao desemprego como melhor chicote para aumentar o servilismo. [...]
Em troca, estabelecer um ambiente propício aos Desempregados Felizes contribuiria, também, para melhorar a situação dos trabalhadores: o seu medo de continuar desempregado diminuiria e a coragem para dizer "não" poderia expressar-se mais livremente. Quiçá, um dia, a correlação de forças voltará a ser favorável para os trabalhadores.
"O quê? Querem controlar-me durante a minha baixa por doença? Se é assim, prefiro juntar-me aos Desempregados Felizes.".
O trabalho é uma questão de sobrevivência. Ninguém nem nada o pode negar. Eis o que diz sobre o assunto, Bob Black, nos Estados Unidos:
"O trabalho é um crime em série, um genocídio. [...] Segundo as estatísticas, neste país, o trabalho mata entre 14 e 25 mil pessoas por ano. Mais de dois milhões foram e ficaram mutiladas ou conservam as suas sequelas. E isto, sem contar, com os 500 mil trabalhadores que sofrem de enfermidades profissionais, nem os acidentes de tráfego quando vão para o trabalho ou voltando dele ou procurando um ou, ainda, procurando não pensar nele... Sem contar, tão pouco, as vitimas da contaminação, do alcoolismo ou do consumo de drogas ligadas ao trabalho. Assim, ter-se-ia de multiplicar por seis o numero de assassinados. E, tudo aquilo que serve, somente, para poder continuar a vender big macs e cadillacs aos sobreviventes."
O sapateiro ou o carpinteiro orgulhavam-se da sua arte. Antigamente, os trabalhadores dos estaleiros - locais onde se construíam barcos - podiam emocionar-se ao ver zarpar o barco que haviam construído. Esta sensação de ser útil à comunidade já não existe em 95% dos trabalhos. O sector "serviços" só emprega peões intercambiáveis atados aos seus computadores, que não tem qualquer razão para se sentirem orgulhosos. O sector "cão de guarda", com as suas polícias, guardas ajuramentados e técnicos de sistemas de alarmes, é, praticamente, o único que continua a crescer, mas a sua utilidade social é bastante limitada: vigiar o que, sem eles, poderia ser gratuito. Inclusive, um médico, funciona cada vez mais como representante/vendedor dos grandes consórcios de medicamentos, laboratórios farmacêuticos.
Quem é que, hoje em dia, pode dizer que se sente útil para os demais? A questão já não é: para que serve esta coisa; mas sim: quanto se pode ganhar com ela. O único objectivo da produção é aumentar os ganhos da empresa. Em consequência, a única relação do trabalhador com o seu trabalho é o seu salário.
O DINHEIRO É O PROBLEMA
O DESEMPREGO existe, justamente, porque o dinheiro é a verdadeira finalidade e não a utilidade social. O pleno emprego significa crise económica. Em troca, o desemprego, faz o mercado económico são. O que se passa?
Quando uma empresa anuncia que extinguirá X postos de trabalho, todos os que especulam na Bolsa louvam a sua estratégia de saneamento, as acções sobem e, de imediato, far-se-á um balanço positivo dos seus benefícios de forma a que os desempregados participem no aumento dos ganhos mais do que os seus ex-colegas de trabalho. Seria lógico, então, premiá-los pela sua contribuição, sem igual, para o desenvolvimento económico. Pelo contrário, o desempregado não recebe nem um pimento desta riqueza que criou. Desta forma, o desempregado feliz pensa que deveria ser remunerado pelo seu não-trabalho.
Em seguida, referimo-nos a Kasimir Malevitch, o valente criador do "Quadrado Negro Sobre o Fundo Branco". Corria o ano de 1921 quando escreveu o seu livro: "A Preguiça: Verdadeira Meta da Humanidade", que foi publicado em russo, unicamente, há dois anos:
"O dinheiro não é outra coisa que um pedacito de preguiça. Quanto mais se tem daquele, tanto mais se poderá desfrutar das delícias desta. [...] Sob o capitalismo, o trabalho é organizado de tal maneira que não facilita o acesso à preguiça a todas as pessoas por igual. Só podem gozá-la os que possuem capital. Assim, a classe dos capitalistas livrou-se deste trabalho do qual, agora, se tem de libertar, toda a humanidade."
Se o desempregado é infeliz, não é porque não tenha trabalho, mas sim porque não tem dinheiro. Desta forma já não deveríamos falar de "procura de emprego" mas sim de "procura de dinheiro", nem de "procura activa de emprego" mas sim de "procura activa de dinheiro", para pôr as coisas no seu lugar. Como iremos ver na continuação, o Desempregado Feliz pretende amenizar esta carência com a busca de recursos obscuros.
Calculem quanto dinheiro destinam, no total, "ao desemprego" os contribuintes e as instituições, e dividam a soma obtida pelo número de desempregados: Vejamos, aí se vislumbram, indubitavelmente, muitíssimos mais zeros dos que encontramos nas nossas contas correntes. Não é verdade?
O grosso do que se gasta não é para o bem estar dos desempregados, mas para um mesquinho controlo, chamadas inúteis, supostos programas de formação que saem de nenhuma parte e que terminam em nada, pseudo-trabalhos por um pseudo-salário., e tudo isso com o único propósito de fazer baixar artificialmente as estatísticas. Tudo para manter as aparências de uma quimera económica.
A nossa primeira proposta pode ser levada à prática, em seguida: pôr fim a todas as medidas de controlo contra os desempregados, fechar todos os departamentos do INE - Instituto Nacional do Emprego, das estatísticas e de propaganda (esta é a nossa contribuição para a redução dos gastos públicos) e fazer participar nos subsídios os desempregados, automática e incondicionalmente, incluindo todas as somas guardadas para controlo.
O novo delírio conservador reprova aos desempregados viver a expensas do Estado-Providência. Bom, mas como muito bem sabemos, o Estado ainda continua a existir e também cobra impostos. Por isso não vemos nenhuma razão pela qual deveríamos renunciar ao seu apoio. Ainda que não estejamos obsessionados com o Estado: em nosso entender, o salário do Desempregado Feliz poderia ser financiado pelo sector privado, seja através de responsáveis, de adopção, de impostos sobre o capital, ou também de chantagem. Não temos preferência.
O desempregado é também infeliz porque o único valor social que conhece é o trabalho. Já que não tendo nada que fazer, aborrece-se. Já não tem contactos, porque o trabalho é, com frequência, a única possibilidade de se relacionar. E o mesmo vale também para os reformados. Mas, a causa desta miséria existencial é, decerto, o trabalho e não só o desemprego.
O Desempregado Feliz introduz novos valores sociais, ainda que isto seja a sua única façanha. Desenvolve contactos com gente simpática que vive à custa alheia. Declara-se, inclusive, disposto a repartir cursos de re-socialização para trabalhadores despedidos.
Acontece assim, porque todos os desempregados dispõem de uma coisa que não tem preço: tempo. A isto poderíamos chamar uma sorte histórica, a possibilidade de viver uma vida plena de sentido, alegria e razão. Pode-se definir o nosso objectivo como uma reconquista do tempo. Estamos, então, tudo menos inactivos, quando à "população activa" só lhe resta obedecer passivamente aos desígnios e ordens dos seus superiores hierárquicos. E é porque somos activos que não temos tempo para trabalhar.
Jacques Mesrine - inimigo número um do Estado francês e autor do livro "O Instinto de Morte" - tomou, um dia, esta decisão:
"Não queria que a minha vida fosse planeada por outros. Quando às seis da manhã tinha vontade de fazer amor, gostaria de lhe dedicar tanto tempo como desejava, sem olhar para o relógio. Queria viver sem relógio, porque com a medição do tempo chegou a primeira pressão sobre a vida dos seres humanos. As frases mais frequentes da vida quotidiana soavam na minha mente: "Não tenho tempo para...", "chegar a tempo", "ganhar tempo", "perder tempo". Mas queria "ter tempo para viver", e a única possibilidade para o conseguir era não me tornar escravo do tempo. Sabia o quanto irracional era a minha teoria e que com ela não se poderia fundamentar uma sociedade. Mas, que tipo de sociedade é esta, com os seus bonitos princípios e leis?"...
O CEMITÉRIO DA MORAL
REPLICAM-NOS que o Desempregado Feliz só é desempregado (sem trabalho) no sentido que hoje em dia o uso comum dá à palavra "trabalho", que é, em definitivo, o trabalho assalariado. A isto temos que contestar, com firmeza, que o Desempregado Feliz não procura trabalho assalariado mas tão pouco procura trabalho como escravo. E só há, que saibamos, dois tipos de trabalho: o trabalho escravo e o trabalho assalariado. Bom, é verdade que também existem estudantes, artistas e outros que são encarregados de marcar as faltas dos que trabalham que não podem escrever ou rabiscar sobre qualquer papel sem presumir que estão fazendo um "trabalho" importante. Inclusive, os chamados "autónomos"* não são capazes de organizar um "seminário" anticapitalista sem chegar a "debates produtivos" em grupos de "trabalho". Palavras pobres para pensamentos pobres.
Não vem de ontem a carga de desgraça que integra a palavra trabalho. Sempre a teve.
[...] Em alemão moderno, a raíz de arbeit significa "fadiga", "tormento", "actividade sem dignidade". Nas línguas latinas sabe-se que "trabalho", "trabajo", "travail", etc., provêem da palavra romana "tripalium", um instrumento de tortura com três pés que se utilizava contra os escravos. O valor espiritual do trabalho como predestinação do ser humano neste mundo, foi promovido por Lutero: "O homem nasceu para trabalhar como o pássaro para voar".
Alguns opinam que estabelecer uma discussão sobre o sentido de uma palavra é procurar cinco pés ao gato. Mas confundir-se a palavra "bebida" com "Coca-Cola", a palavra "cultura" com "Carmen de Sevilha" ou, inclusive, "actividade" com "trabalho", não deixaria de ter graves sequelas.
Quando falamos de trabalho ou de desemprego, tratamos com categorias morais. Esta tendência agudiza-se dia-a-dia. Basta, para isso, ler os periódicos para nos darmos conta disso.
"Uma concepção do mundo venceu outra", vangloria-se um técnico de Washington. Em vez de considerar que a pobreza tem causas económicas, a nova escola de pensamento, que predomina agora, considera que a pobreza é consequência de um comportamento moral erróneo.
Isso tem a ver como quando os clérigos viram ameaçado o seu monopólio sobre o espírito, a moral passou a ter outra significação para eles e agora só serve para pôr remendos sobre a ruptura que se vai desenvolvendo entre a realidade e a sua imagem ideológica. Aqueles que dizem a um desempregado: "Pecaste", esperam que ele faça penitência ou dê provas de boa vontade. Em ambos os casos, terá reconhecido a existência da sua culpa. Os esforços lamentosos para provocar a compaixão deste mundo provocarão, quando muito, lástima. Só um riso superior poderá, seriamente, fazer tremer a moral.
É claro que, Paul Lafargue, genro de Karl Marx e autor do "Direito à Preguiça", é um modelo histórico para o Desempregado Feliz:
"Os economistas não têm descanso a animar os trabalhadores: Trabalhai!, para que cresça a riqueza nacional". E, sem embargo, foi um deles, Destutt de Tracy, que disse:
"As nações pobres são aquelas onde o povo vive a contento. Nas nações ricas o povo encontra-se, normalmente, miserável."
Mas, idiotizados e ensurdecidos pela sua própria gritaria, os economistas continuam a responder: "Trabalhai, proletários, trabalhai; multiplicai a riqueza nacional e, através dela, a vossa miséria pessoal. Trabalhai para que, cada vez mais pobres, tenhais mais razões para trabalhar e ser miseráveis."
Sem dúvida, não pedimos nenhum direito à preguiça. A preguiça, ao fim e ao cabo, não deixa de ser mais do que o contrário do empenho. Onde não se reconhece o trabalho, a preguiça perde o seu sentido. Não há vício sem virtude. Desde o tempo de Lafargue que se comprovou que o "tempo livre" concedido ao trabalhador, a maioria das vezes, provoca muito mais aborrecimento do que o próprio trabalho. Não é suficiente, portanto, reduzir o tempo de trabalho e aumentar o tempo livre. Quem quer viver entre tv's, jogos interpassivos e viagens organizadas? Em troca, solidarizamo-nos a cem por cento com aqueles trabalhadores espanhóis que, quando ainda há pouco se quis acabar com a sesta, em Espanha, sob o pretexto de que ameaçava o mercado europeu, opinaram que, pelo contrário, era a União Europeia que deveria introduzir a Euro-Sesta.
Há que esclarecer que, o Desempregado Feliz, não apoia os partidários da redução do horário de trabalho, e pensam que o problema se resolveria se cada um continuasse com o seu trabalho, mas só com, 5, 3, ou 2 horas diárias.
Que carapuça é esta?
Olho para o relógio quando preparo um almoço para os amigos?
Acaso estou dependente do tempo quando me dedico a escrever este maldito texto?
Calcula-se o tempo quando se faz amor?
Mas, atenção! isto não quer dizer que o Desempregado Feliz seja uma nova utopia. Utopia significa "lugar não-existente". O utópico desenha os planos exactos de uma suposta construção ideal e espera que o mundo se molde a ela. Ao contrário deste, o Desempregado Feliz é um "topista": tacteia e experimenta os lugares e coisas que tem ao alcance da mão. Não elabora nenhum sistema, senão que investiga todas as possibilidades para melhorar o que o rodeia.
Uma pessoa honrada escreve-nos:
"O Desempregado Feliz anseia um reconhecimento social com o financiamento sem condições que o acompanha? ou melhor, procura subverter o sistema através de acções ilegais, como, por exemplo, furar os contadores da luz?** A combinação das duas estratégias não parece lógica: posso, dificilmente, exigir aceitação social e ao mesmo tempo fomentar o ilegalismo."
Bom. O Desempregado Feliz não é nenhum fanático da ilegalidade. É tal o seu afã de fazer o Bem que está, inclusive, disposto a fazê-lo através de meios legais. E mais: o que hoje em dia é um direito, antes era um crime, como por exemplo, o direito à greve. E amanhã pode voltar a ser considerado um crime. Falamos sobretudo de reconhecimento social. Não nos dirigimos ao Estado nem aos organismos oficiais, senão a indivíduos singulares ou grupos que se interessam pela Questão Social.
Aí, já escutamos o coro dos teóricos da luta de classes:
"Tudo isto é muito bonito mas não é mais do que uma válvula de escape para o sistema, graças ao qual as franjas desocupadas do proletariado moverão as funções vitais que lhes restam para regiões ilusórias, para assim amenizar as contradições do capitalismo. Enquanto os Desempregados Felizes se divertem, a burguesia pode extrair a sua mais-valia sem já encontrar resistência. Traição! Traição!"
Cada passo andado e, até mesmo, o simples facto de respirar, pode ser caluniado como veleidade de adaptação. Mas não se trata de outra coisa: a possibilidade de respirar. A crítica social, por mais aguda que seja, de pouco serve se a sua conclusão prática não passar de ser um eterno "sentar-se e vê-las passar".
Estamos conscientes de que o nosso intento pode fracassar por motivos diversos. Por exemplo, pode transformar-se numa brincadeira, numa zombaria sem consequências. A ideia original pode também ser afogada sob toneladas de seriedade de cartolina. Também poderá ocorrer que um grupito de Desempregados Felizes se torne tão famoso que se convertam em empresários felizes sem relação alguma com a sua relação original. Aqueles são riscos, mas sem nenhuma fatalidade. Agora que lançámos a bola, não depende unicamente de nós, se acaba em golo ou não.
A VANTAGEM DE SER EXCLUÍDO
HOJE, brotam múltiplos movimentos e iniciativas contra os cortes sociais, contra o desemprego, contra o neoliberalismo, etc. Mas a questão é: a favor de que nos deveríamos declarar? Seguramente que não do Estado de Bem Estar e do pleno emprego, já que a sua reinstauração é, de todos os modos, menos provável que o regresso da locomotiva a vapor. E mais, o que nos espreita poderia resultar pior: não seria nenhum disparate imaginar que se conceda um dia, aos desempregados, a possibilidade de cultivar verduras e improvisar relações nos terrenos baldios ou nos vazadouros da pós-modernidade, vigiados à distância por um polícia High-Tech (armado de alta tecnologia) e entregues a uma qualquer máfia, enquanto a minoria rica continuaria com os seus assuntos sem mais preocupações. Os Desempregados Felizes procuram uma saída para esta terrorífica alternativa. Para nós, é uma questão de princípios.
Outra palavra-chave da propaganda oficial é a palavra "exclusão": os desempregados estariam excluídos da sociedade e as almas generosas advogam pela sua reintegração. Um humanista da Unesco explicou o que significa isto no "Vértice da Pirâmide Social" de Copenhaga: "O primeiro passo para a integração social é ser explorado." Obrigado pelo convite!
Há três séculos, os camponeses levantavam os olhos com inveja para a casa do senhor. Com razão, sentiam-se excluídos das suas riquezas, da sua nobreza, do seu ócio, dos artistas da corte e das cortesãs. Ora bem: Quem é que gostaria de viver como um executivo cheio de stress? Quem é que sonha encher a cabeça com os seus cálculos de números sem sentido, rebolar-se com as suas secretárias tingidas de ruivo, beber os seus Bordéus adulterados e, rebentar, finalmente, com o enfarte do miocárdio?
Excluímo-nos, de boa vontade, desta abstracção dominante. Outro tipo de integração é o que desejamos.
Nos países pobres, milhões de pessoas vivem à margem dos circuitos da economia de mercado. Todos os dias, os jornais falam das pragas do Terceiro Mundo, da sua horrível cadeia de famintos, ditaduras, guerras e enfermidades. Mas, apesar de tudo, não se pode esquecer que ao mesmo tempo que se dá esta miséria (a maioria das vezes importada), existe também outra realidade: uma vida intensamente social, apoiada em tradições pré-capitalistas. Se se comparam com aquilo, as sociedades ocidentais parecem moribundas.
Ali, nessas sociedades, despreza-se o trabalho do homem branco porque não tem fim - mas, pelo contrário, os artesãos somalis, por exemplo, cujos ganhos desbaratam rapidamente numa grande festa anual, o trabalho tem outro significado. A fórmula tornou-se famosa: quanto mais baixo é o Produto Interno Bruto por cabeça, tanto maior é a capacidade das pessoas para gozar.
O antropólogo Serge Latouche escreve no livro "O Planeta dos Náufragos":
"A actividade informal evidencia que a solidariedade é uma forma de riqueza autêntica. Pôr a sua pobreza em comum, com a esperança de obter abundância, não é irrealista. Os pobres são muitíssimo mais ricos do que se pensa e do que eles próprios pensam. A incrível alegria de viver que assombra muitos observadores dos subúrbios das cidades africanas resulta menos enganosa que os deprimentes cálculos objectivos das instituições estatísticas, que só tomam em consideração os parâmetros ocidentais da riqueza e da pobreza."
Claro, para um europeu, existe o perigo de recriar-se num exotismo barato. Sem dúvida, basta escutar o que contam os mesmos imigrantes, que conhecem por experiência os dois mundos, para convencer-se da vantagem que tem o Sul quanto aos vínculos sociais.
O egípcio Albert Cossery, em "Mendigos e Altivos" diz:
"Nesse momento, a sua cara reflectia todas as preocupações terrenas. Mas, este estado de ânimo, impunha-se a si mesmo, só de vez em quando, para não perder a fé na sua dignidade. Porque Koldi pensava que a dignidade só era fruto da desgraça e do desespero. A leitura de livros ocidentais havia transtornado a sua mente."
Os Desempregados Felizes podem aprender muito de África e de outras culturas. E, também, desaprender. Sem dúvida, que não se trata de imitar antigos hábitos sociais, mas podemos encontrar neles uma refrescante fonte de inspiração. Já assim o fizeram Picasso e os dadaístas quando se inspiraram na Arte Negra.
Aqui só mencionaremos um exemplo: há alguns anos, um grupo de sociólogos examinou a vida da população do Grand Goff, um bairro pobre de Dakar, Senegal. Deram-se conta que o ganho real de uma família média de doze pessoas é sete vezes maior do que os seus "recursos oficiais". Não vamos acreditar que estas pessoas encontraram a fórmula mágica para multiplicar por sete os cheques bancários... Mas sabem aumentar o rendimento das suas precárias finanças organizando a sua intensa circulação. É impossível viver em África sem pertencer a uma etnia, a um clã, a uma família ampliada, a um círculo de amigos. Dentro de cada uma destas redes, o dinheiro está submetido a uma circulação permanente, através de todo um sistema de dádivas, presentes, donativos, empréstimos e devoluções, investimentos, participações em diversas "caixas de aforro" informais... Assim, cada membro do grupo pode dispor, para sair de uma dificuldade ou financiar um projecto, de uma soma muito maior que os seus magros recursos pessoais permitiam.
Além disso, estes fluxos monetários só são um dos aspectos desta "economia da reciprocidade", a qual consiste, também, no intercâmbio de um sem fim de serviços, tais como: trabalhos de reparação, instalação e manutenção, fabricação de calçado e roupa, preparação colectiva de comidas, trabalho de metal e de madeira, serviços de saúde e educação, sem esquecer a organização de numerosas festas que fortalecem a unidade do grupo. Actividades, nas quais, o dinheiro não joga qualquer papel.
É a razão pela qual resulta impossível medir o "nível de vida" dessas populações com os critérios ocidentais.
Imaginemos, agora, que este sistema se aplicasse aqui: de repente, os que recebem subsídio, acabariam por dispor de sete vezes o seu valor! O que resolveria todos os problemas e, pelo menos, poderíamos aviar-nos, com mais frequência, na mercearia... E, além disso, beneficiaríamos de coisas que não se podem comprar com dinheiro. Porque a pergunta: Quanto dinheiro necessito para viver bem? é insuficiente.
Quem vive totalmente isolado, num limbo a-social, jamais terá dinheiro suficiente para colmatar a sua miséria existencial.
Claro, aqui, na sociedade ocidental, do Estado de bem-estar, o beneficiário do subsídio, depara-se com um grande obstáculo: não é apoiado por nenhum clã ou costume. Tudo tem que ser reinventado. Mas temos, pelo menos, uma vantagem: as nossas condições de vida não são, todavia, tão duras como as dos africanos.
Diante dos Desempregados Felizes estende-se o campo aberto da experimentação. O que nós chamamos a "busca de recursos obscuros".
Como todos se terão apercebido, agora, a nossa relaxação é ambiciosa, ao mesmo tempo teórica e prática, séria, lúdica, local e internacional (nada mais, aqui na Europa, existem já vinte milhões de desempregados felizes virtuais!).
Um dia, poderás dizer, com orgulho:
Vivi o começo!
Os Desempregados Felizes
* Militantes radicais alemães.
** Alude-se aqui, provavelmente, ao "freio bloqueador fixo para contadores eléctricos" uma das invenções experimentadas pelos nossos laboratórios.
versão corrigida da tradução existente nesta página.
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A. Pedro Ribeiro disse...
absolutamente certo.
12 de dezembro de 2008 às 00:46
paulo disse...
Fiquei Desempregado (Feliz) dum emprego precário mesmo neste mês de Janeiro de 2009. Estou Feliz por ter mais tempo para cultivar verduras, pintar, conhecer pessoas, fazer caridade e deixar de aturar chefes, trabalhos chatos e objectivos sem sentido.
Agora vou, como dizia o caro amigo Agostinho da Silva, procurar expressar melhor através de outras ocupações (com muito menos tempo e chatice) o meu sustento.
Menos consumo, mais coisas gratuitas divertidas (como amizade, amor, arte). Menos necessidade, mais fácil viver confortável apenas com um part-time
Claro que ainda me é tudo experimental. É a 1ªvez que experimento estes modos de vida.
E um dia havemos vários de nós ter esse sentido de comunidade e do provir da Terra que nos sustentará sem necessidade de dinheiro.
6 de janeiro de 2009 às 22:31