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INTRODUÇÃO

Um acaso objectivo fez coincidir na primavera de 2004 duas tentativas de afirmação de uma corrente “comunizadora”. Por um lado, houve uma reunião preparatória da revista Meeting *, reunião na qual se encontrariam várias pessoas que se reclamam desta corrente – se bem que neste caso se tratava sobretudo de gente próxima a Théorie Communiste [1]. Paralelamente, e sem nenhum vínculo visível com dito projecto de revista, apareceu um pequeno livro, Appel (”Apelo”), sem indicação de autor nem de lugar de publicação, como contributo às actividades que tendem à comunização.

Falar de comunização é afirmar que a futura revolução não terá nenhum sentido emancipador nem possibilidade de sucesso a não ser que desenvolva desde o começo uma transformação comunista em todos os planos, da produção de alimentos até ao modo como comê-los, passando pela forma de nos deslocarmos, onde vivemos, como aprendemos, viajamos, lemos, do modo como nos entregamos ao ócio, como nos amamos e odiamos, como discutimos e decidimos o nosso futuro, etc. Este processo não substitui, mas acompanha e reforça a destruição (necessariamente violenta) do Estado e das instituições políticas que sustentam a mercadoria e a exploração salarial. Esta transformação, que se dará à escala planetária, se estenderá sem dúvida ao longo de algumas gerações, mas não consistirá em que se tenha que criar previamente as bases de uma sociedade futura destinada a realizar-se só depois de uma fase mais ou menos longa de “transição”. Esta transformação não seria uma mera consequência da conquista (ou da demolição) do poder político, que posteriormente daria lugar a uma alteração social profunda. Seria o contrário do que resume a fórmula de Victor Serge (então bolchevique), que escreveu em 1921: “Toda a revolução é um sacrifício do presente em nome do futuro” [2]. Para dizê-lo positivamente: não se trata somente de fazer, mas de ser a revolução.

Se o que se chama “corrente comunizadora” designa o conjunto dos que se situam nesta perspectiva, fazemos parte dela e consideramos saudável todo esforço colectivo que aponta nesse sentido. No entanto, rejeitamos o convite à reunião preparatória da revista projectada.

ENCONTRO



O acordo sobre a comunização é uma condição sine qua non para um reagrupamento, mas não é suficiente. Os textos escolhidos para a reunião incluíam um extenso artigo de Karl Nesic [3] no qual se expunha nomeadamente a nossa divergência com Théorie Communiste, divergência essa bastante profunda para tornar mais ou menos impossível a colaboração teórica.

Se tal como pensa Théorie Communiste nós caímos no humanismo idealista, ou se tal como pensamos nós eles caem no estruturalismo determinista, isto impede todo o esforço teórico em comum, e inclusive torna difícil a discussão. Não saberíamos como discutir senão havendo acordo sobre o essencial, havendo entendimento sobre as questões a colocar, divergindo no entanto nas respostas a dar-lhes.

Em nossa opinião, nem a revolução era logicamente impossível no passado, como não se tornou logicamente possível e menos ainda inelutável há alguns anos. É só uma possibilidade, que evidentemente se relaciona com o grau e as formas do desenvolvimento capitalista neste momento histórico, mas que não depende desse grau de desenvolvimento para acontecer. Nenhum umbral a faz impossível, ou possível, nem sequer indispensável. A revolução era possível em meados do século XIX tal como ainda o é a princípios do século XXI. Se ocorrer, será antes de mais o resultado da actividade dos proletários. Será ruptura e auto-emancipação. As razões do fracasso das tentativas passadas não é preciso buscá-las no grau de desenvolvimento do capital, mas na própria actividade do proletariado. O essencial não é o que a sociedade faz de nós, mas o que nós fazemos com o que ela faz de nós.

O capital não é nenhuma entidade regida por leis que acabam provocando um inevitável levantamento proletário, mas é uma contradição social em processo. Não existe nenhuma crise do capital, somente há crises dos seus actores. Custa-nos a compreender que os mesmos que tanto insistem - e com razão – na “implicação recíproca” entre capital e trabalho, possam ao mesmo tempo analisar a história como uma relação de causa-efeito, com o proletariado desempenhando o papel de efeito e tudo levando a um fim já programado: o comunismo. Quantas vezes no passado não previmos a crise final e o seu resultado obrigatório: a revolução…? Tudo o que podemos propor são hipóteses sobre como evoluirá a contradição capital/proletariado, e o facto de que tais hipóteses sejam eventualmente desmentidas pelos factos não compromete a nossa perspectiva de conjunto, porque esta não se apoia em nenhuma previsão. A luta de classes continua sendo amplamente imprevisível. Se o capital é contradição social em processo, isto implica com efeito uma relação dialéctica entre os seres e os grupos sociais: os indivíduos, as fracções de classe, as próprias classes evidentemente não estão determinadas por um livre arbítrio, mas cada encruzilhada histórica as obriga a escolher entre um certo leque de possibilidades. A história não é um Grande Livro escrito antecipadamente.



A teoria revolucionária e as suas “análises concretas da situação concreta” baseiam-se evidentemente em premissas teóricas, mas não pretendem abranger todo o passado e o presente deste mundo. Mesmo que se sinta no dever de ser o mais rigorosa possível, a teoria comunista não é científica: não pretende construir um objecto de estudo independente do quem o estuda, a partir dessa posição privilegiada na qual o cientista acha poder controlar a totalidade do fenómeno e alcançar as suas leis. A teoria comunista também não é profética. Toda a profecia é irrefutável e imune ao desmentido dos factos, já que ao estar situada a um nível supra-histórico, é pela sua própria natureza inacessível à vulgar materialidade. O recorrente debate no movimento comunista acerca da inevitabilidade da revolução não tem fim nem sentido. Somos refutáveis…

…nomeadamente quando afirmamos que a realidade social actual impede que o comunismo esteja na ordem do dia; que a revolução, no sentido em que a concebe a corrente comunizadora, hoje em dia não é mais que um tema de debate para um punhado de indivíduos e grupos, e que nisso não há nada de significativamente diferente da situação que prevalecia há dez ou quinze anos. A iniciativa continua a pertencer à burguesia, e a única crítica “real” deste mundo é a do reformismo radical, de resto até agora sem nenhum verdadeiro conteúdo ou repercussão social. A nossa época está marcada pela impotência dos proletários em geral, e pela dos comunistas em particular.

Actualmente, mais ainda que no passado, não faz sentido achar que a teoria por si mesma possa regular o diferendo que mantém consigo mesma e com a sociedade, que possa deixar agora de ser parcial e fragmentária. Quando não dispomos de quase nada mais que as “armas da crítica”, estamos muito longe da crítica pelas armas. A rapidez dos intercâmbios de informação e o acesso imediato aos milhares de textos na internet coincidem com um confronto de ideias relativamente pobre. Supondo que a era do virtual não tenha vindo a agravar esta debilidade, também não lhe deu remédio. A velocidade de rotação das ideias parece inversamente proporcional à intensidade dos debates que suscitam. Jamais a posse de uma extensa biblioteca garantiu a qualidade de uma reflexão. Poupem-nos os sorrisos perante a nossa “tecnofobia”. Mesmo considerando útil manter uma página na internet, verificamos que muitos revolucionários partilham das ilusões da revolução informática. A crítica da ingestão de carne está mais difundida que a do uso de computadores, e a crítica das auto-estradas para automóveis mais frequente que a da “auto-estrada da informação”. Mesmo havendo uma extrema escassez, ou mesmo ausência pura e simples de textos de Bakunin, Pannekoek ou o próprio Marx em 1967, isso não impediu que uma onda contestatária lhes fizesse eco. Poucos anos antes, a revista Potlatch divulgava entre 50 e 500 exemplares. Trinta anos depois a disponibilidade instantânea de tudo não impede que a crítica social se desenvolva a um nível claramente inferior. Isto não vai melhorar multiplicando por dez as reuniões, nem por mil as ligações virtuais. O movimento revolucionário não é um assunto de circulação nem a superação das nossas limitações um problema de relações. Só a evolução da realidade social, para a qual contribuirão as minorias comunistas mas não mais que os outros proletários, é e será determinante, confirmando ou invalidando total ou parcialmente as nossas hipóteses, e contribuindo para uma totalização.



Nas condições actuais, a não se assemelhar a uma versão ampliada de Théorie Communiste, o reagrupamento previsto em torno da revista Meeting produzirá no melhor dos casos um boletim interno dos comunizadores. Mas a justaposição não é o mesmo que o diálogo, e nem todo o diálogo é necessariamente clarificador. Os documentos preparatórios da reunião evidenciam já perspectivas bastante divergentes, por vezes dificilmente conciliáveis. O decisivo é o conteúdo que se atribui às palavras comunização, classe, luta de classes e abolição das classes. Muitos camaradas, e não somente os “comunizadores”, assumem a ideia de uma classe que ao existir e ao lutar como classe acabará abolindo todas as classes, mas esta fórmula interpretam-na em sentidos muito diferentes, e amiúde contraditórios. Quanto a actividades práticas qualitativamente superiores às que se realizaram até agora, não fica nada claro como seriam favorecidas por tal iniciativa. Depois de 1945, segundo critérios muito diferentes da comunização mas ambos pertinentes, Bordiga e Pannekoek mantinham acordo em aspectos fundamentais que os distinguiam claramente dos trotskistas, dos anarquistas, etc. Não obstante, ninguém imaginava fazê-los coabitar numa mesma organização.

A teoria comunista baseia-se numa premissa ainda não demonstrada, o que implica inevitavelmente uma fragmentação, que necessariamente aumenta em todo período de baixa intensidade da luta de classes. Marx e Engels, mesmo estando menos isolados que nós, admitiam que em geral não contavam mais que com eles mesmos, e não com um amplo movimento que devia reconhecer o seu “mandato” de teóricos revolucionários. Cento e cinquenta anos depois, depois de ter sido mostrado dez vezes sobre o seu leito de morte, o capitalismo continua vivo, e a comprovação efectiva da teoria de uma revolução comunista segue pendente. Pode-se teorizar tudo e também o contrário: a revolução pode parecer muito evidente devido à persistência de um movimento proletário, ou impossível devido à prática persistentemente não comunista dos mesmos proletários. Um mesmo rigor demonstrativo saberia basear estas duas opiniões contrárias em factos históricos provados e conceitos próximos, reivindicando-se sem muito abuso dos nossos clássicos. Mesmo que diametralmente opostas, estas duas posições têm em comum algo fundamental: ambas julgam a coerência e a pertinência de um conceito segundo o que este diz de si mesmo. Mas, a luta de classes é e será o único juiz na matéria. Só as irrupções proletárias sobre a cena histórica “provam” a validade da teoria do proletariado, teoria que somente uma revolução comunista poderá provar de maneira definitiva. Entre cada grande onda de agitação social, e até que ocorra a última, que seria “a verdadeira”, a suspensão de toda reflexão e actividade revolucionária produz um sentimento de vazio. Em tais casos desenvolve-se uma tendência natural a preencher este vazio o melhor que se pode. Mas transformar as derrotas em vitórias só é possível sobre o papel; é melhor reconhecer-se temporariamente derrotado se o que se ambiciona é não permanecer nessa situação.

A tarefa do momento não é organizar uma expressão comum, nem argumentações que se cruzam sem encontrar-se, mas aprofundar os nossos pressupostos particulares admitindo e integrando o seu carácter inacabado, e confrontá-los aos factos que analisam. Posto isto, é preciso assumir que por indispensável que seja esta actividade, não conduzirá a uma síntese crítica, inacessível actualmente. Para parafrasear a Internacional Situacionista, o importante hoje não é a unidade mas a divisão assumida: supera-se uma situação dada, sobretudo uma situação de debilidade e isolamento, assumindo-a, e não agindo como se não existisse, ou como se dependesse sobretudo da (boa) vontade dos comunizadores…



…ou de polémicas “sem concessões”. Polemizar é personalizar, considerar o outro como proprietário de ideias das que só é depositário, e assim imediatamente comprometer-se num caminho falso. A polémica tem por objecto destruir o adversário, tratando-o no pior dos casos como inimigo, e no melhor como troféu. Preferimos criticar aquilo que apresenta interesse e merece ser desconstruído para situá-lo num outro conjunto onde possa tomar um novo sentido. Criticamos não o que julgamos absurdo ou estúpido (e muito menos “perigoso”!, mas o que lemos e queremos que se leia [4].

Por esta razão, geralmente citamos pouco o que nos parece criticável. O polemista em busca de um alvo fácil escolhe no adversário a frase que lhe parece mais fraca. Preferimos expor nossa posição e deixar ao leitor a tarefa de contrastá-la com a lógica da posição divergente. Para quê citar trinta frases que provam o determinismo de Théorie Communiste? Um oponente poderia encontrar trinta frases que provem o contrário. É o movimento global de um posicionamento que segue ou não uma linha determinista. Um leitor que se contentasse com citações para declarar-se de acordo connosco não teria compreendido nada do nosso método.

Pouco de polémica, e certamente, nada de refundação. Isto talvez seja o que têm em comum as pessoas interessadas em Meeting, e sem dúvida é o núcleo do que nos afasta de tal projecto. Apesar das divergências entre Théorie Communiste e os demais participantes (por exemplo a revista e sítio web La Matérielle [5]), todos eles consideram necessária uma reconstrução teórica, sem dúvida que sobre a base dos conceitos fundamentais (classes, relações de produção, capital, Estado, comunismo…), mas colocando-os ao serviço da produção de uma teoria revolucionária para nosso tempo; teoria que explicaria a impossibilidade do comunismo antes (isto é, no período que inclui a fase 1960-80) e sua possibilidade-necessidade a partir de agora. Portanto, uma teoria que explique os últimos fracassos e o possível-provável sucesso futuro.



Na nossa opinião, e sem querer defender uma invariância, consideramos que tal refundação doutrinal não tem objecto. Arriscando-nos que alguns nos vejam como bordiguistas, diremos que a parte essencial da teoria revolucionária foi formulada na década de 1840 (e correndo o risco de espantar outros, acrescentaremos que a IS não estava muito longe de reconhecer este facto). Qual é essa parte essencial? A definição do proletariado como nova força histórica em relação aos escravos, aos servos, aos pobres, explorados e despojados de épocas anteriores ao capitalismo (antes do Renascimento, antes sobretudo da industrialização). E isso, não por amor à indústria ou às forças produtivas (mesmo que a ambiguidade de Marx e outros em torno deste ponto seja inegável, aqui concentramo-nos nos pontos fortes da sua perspectiva, e não nas suas debilidades), mas porque o capitalismo é o primeiro sistema de exploração universal, e baseia-se num proletariado potencialmente revolucionário devido a sua existência no capital, a sua inter-relação com o capital, à “implicação recíproca” precisamente, que lhe dá a capacidade de actuar como sujeito de uma mudança social radical, a capacidade de criar uma comunidade humana. A partir da metade do século XIX começou a ficar claro o conteúdo do comunismo: abolição da propriedade privada, do capital, do dinheiro, do trabalho, do Estado.

Segundo esta perspectiva, não há nenhuma diferença fundamental que separe o mineiro inglês ou o artesão proletarizado parisiense de 1850, do assalariado de um call-center em Indiana ou do camionista californiano do ano 2004. Se analisamos os factores que em 1850 impediam o mineiro e o artesão proletarizado de empreender uma acção comunista, esses “limites objectivos” (isto é, que não dependiam deles mas lhes eram impostos pela situação) também os encontraremos no assalariado do call center e no camionista do ano 2004. O que os quatro têm em comum (em termos de possibilidade histórica e de freio e inércia social) é infinitamente mais que aquilo que os distingue. E isso é o essencial.



Talvez esta teorização seja falsa, mas basicamente, não temos outra. Nenhuma nova teoria está em condições de prová-la ou desmenti-la. Só a história (não ocorrida, portanto o futuro) poderá fazê-lo. Não há nada hoje dia que garanta ou possa demonstrar que os proletários de 2015 ou 2030 actuarão melhor ou serão mais revolucionários que os de 1848, 1919 ou 1969.

Esta parte essencial não é a totalidade. Destruição do Estado, crítica do movimento operário, crítica de todas as mediações, crítica da nação, crítica da vida quotidiana, compreensão da revolução como comunização… todas estas contribuições indispensáveis surgiram e podiam surgir antes de 1848. E mais, ao abordar estes diferentes pontos, os comunistas de 1920 ou de 1970 amiúde foram contra as posições de Marx e Engels. O que não impede que estas contribuições só adquirem sentido se estão ou estavam integradas na definição essencial, caso contrário é toda a perspectiva comunista que se suprime.

Não se precisa duma teoria pós-operária da revolução, porque a que temos, a de Marx, Pannekoek, Bordiga ou Debord não era nenhuma teoria “operária”. Que o comunismo cedeu ao obrerismo, é inegável. Mas no seu sentido mais profundo e ofensivo, quem se buscava no operário não era o produtor e manipulador de ferramentas e máquinas supostamente libertadoras., mas o proletário. O obrerismo não foi o programa do proletariado, mas o da contra-revolução. Não temos aqui espaço para demonstrar que isto é assim, mas mesmo na mais “operária” das correntes comunistas, a esquerda alemã: o verdadeiro partido do operário não era o KAPD, mas o USPD.

A não ser que signifique embarcar-se numa deriva, voluntária ou não, controlada ou não - o que certamente não é o caso de Meeting - fundar a teoria não pode significar a busca de um ponto de observação privilegiado desde o qual o conjunto da história da humanidade se revelará aos que possuem o código correcto. Aí encontramos um novo exemplo da crença (compreensível mas ilusória) na omnipotência do espírito humano.



No fim de contas, tudo indica que os membros do projecto Meeting dão à comunização um conteúdos diferente do que resumimos no início deste texto. Para eles esta noção não designa o processo concreto de transformação comunista das relações sociais, mas define um tempo completamente novo, o da revolução enfim possível e necessária. É difícil não ver aí uma regressão em relação ao que tentavam fazer, por exemplo e cada um a sua maneira, Um mundo sem dinheiro, A Banquise, ou mesmo mais recentemente, Hic Salta [6].





APELO





Se bem que profundamente diferente, Appel ilustra também uma situação de crise, esforçando-se à sua maneira para a ultrapassar.



Responder a Appel sacando da nossa balança teórica reluzente para pesar os prós e contras não teria nenhum sentido, ou daria prova de uma triste indiferença com a subversão social que nasce, actua, se procura e se formaliza. Quaisquer que sejam as apreensões que possa suscitar, este livro expressa uma existência, uma experiência, em particular nas acções antiglobalização dos últimos anos, e à sua maneira põe o dedo sobre esta época. Expressa numa linguagem que procura ser poética, o seu acervo teórico inclui elementos de compreensão essenciais tomados de empréstimo de Marx, da esquerda comunista, da IS, da anarquia, sem reivindicar nenhuma filiação, sem citar directamente nenhum clássico: integradas no texto, as citações frequentemente atribuem-se “a um amigo” ou a “um velho amigo”.

“À força de ver o inimigo como um sujeito que nos enfrenta - em vez de experimentá-lo como uma relação que nos constrange - que nos enclausuramos enquanto lutamos contra a clausura“. (p.8)

“À prática do comunismo, tal como a vivemos, a chamamos o Jogo. Quando alcançamos um nível superior de comunização dizemos que construímos o Jogo. Sem dúvida outros, que ainda não conhecemos, estão também construindo o Jogo, em outro lugar. Este apelo é-lhes dirigido“. (p.63)

“A construção do Partido, no seu aspecto mais visível, consiste para nós na colocação em comum, a comunização daquilo de que dispomos. Comunizar um bem quer dizer: libertar-lhe o uso e sobre a base desta libertação, experimentar relações de afinidade intensas, complexas“. (p.66)

“Há ocasiões, como num motim, onde o facto de relacionar-nos entre camaradas aumenta consideravelmente nossa capacidade de ataque. Quem pode dizer que o problema do abastecimento de armas não é parte da constituição material de uma comunidade?“(p.67)

A comunização define-se aqui como antagónica a este mundo, em conflito irreconciliável e violento (até à ilegalidade) com ele. Difere pois da alternativa que pretende (e consegue amiúde) fazer-se aceitar à margem, e coexistir duradouramente com o Estado e o regime de trabalho assalariado, esperando que algum dia a relação de forças se inverta por si só e que as zonas e actividades “libertadas” se tornem maioritárias até que acabem ganhando todo o espaço, sem revolução, graças à superioridade natural das relações humanas e fraternais sobre as relações mercantis e de dominação Não só não compartilhamos essa visão, mas combatemo-la.

No entanto, como “tornar habitável a situação de excepção”? (p.78). Por exemplo, como viver sem trabalhar, na ausência dum movimento de grande amplitude que rompa com a ordem estabelecida?

Appel supõe aqueles a quem se dirige como um meio já organizado (ou em vias de sê-lo) e relativamente numeroso. É permissível duvidar que assim seja. O livro reconhece que a experiência do Black Bloc mostrou os limites da resistência social: se se defender é difícil, como passar à ofensiva?

Ao não fazer-se esta pergunta, corre-se o risco de se teorizar uma comunização limitada a um desvio, sem dúvida necessário para uma revolução, mas insuficiente. Comunizar é experimentar outras relações, outras atitudes de viver, em todos os planos. Mas é também, obrigatoriamente, algo mais e outra coisa que alargar ao máximo as margens de autonomia que esta sociedade permite. Fazemos nossa a definição do comunismo como colocação em comum, como ser e fazer juntos, como processo e como conflito. Mas como pôr em prática agora, na realidade social que prevalece em 2004, uns laços, uns espaços, umas rupturas, que não sejam mais uma alternativa radical que a de outros, sem dúvida alguma mais violenta e mais reprimida porque frequentemente fora da lei, mas também integrados ao funcionamento do capitalismo moderno?



A partir de agora cada cidade da Europa e América do norte (e em breve cada vez mais da Ásia) terá seu grupo verde radical, sua comunidade anarquista, o seu ocupa. Viver fora do trabalho assalariado é possível (ou obrigatório) para milhões de europeus. O hedonismo contemporâneo reverte a fórmula de Victor Serge que citámos no início deste artigo: convida-nos a não sacrificar o presente em nome do futuro, mas que construamos situações intensas, que vivamos agora de um modo diferente as mesmas relações sociais. Este hedonismo converge com o movimento alter-mundista na mesma negação da totalidade, e de toda destruição do poder político central: do seu ponto de vista, o que se pode fazer é tomar o poder sobre cada pessoa e localmente, substituindo a revolução social futura por milhões de revoluções pessoais e micro-colectivas.

Appel descreve um movimento anti-globalização inicialmente subversivo, mas depois reabsorvido por diferentes burocracias, sem se perguntar suficientemente sobre a realidade desse movimento, sobre o facto de que nasceu quinze anos depois que os últimos ecos das sacudidas revolucionárias dos anos 60-70, cuja compreensão é indispensável para entender onde estamos agora.

Se, como o afirma o livro, os anti-globalizadores radicais tivessem vencido a esquerda mundial na rua, obrigando-a a retirar-se para os seus fóruns sociais, nós (os autores de Appel, nós mesmos, e muitos outros) teríamos uma existência, uma acção regular na rua, o que não é o caso, temos que admiti-lo. Falta a este Appel (apelo) uma análise do movimento social presente, das lutas, dos retrocessos e resistências no mundo do trabalho, das greves, de sua aparição, de sua derrota frequente, da sua ausência ocasional; numa palavra: tudo o que cobre o alter-mundialismo e cujos limites exprime.

Apesar da “desertificação” das relações humanas, o velho mundo não está agonizando, e sustenta-se também das crises, nas quais tudo se esgota para durar, tanto burgueses como proletários.

Um “apelo” não se refuta. Escuta-se ou ignora-se. O leitor terá compreendido a nossa escolha. Appel reflecte os dilemas da nossa época, e as suas aspirações. Se há ambiguidade, esta só se resolverá pela prática dos que fizeram tal apelo, mas sobretudo por todos aqueles a que este se refere. Por exemplo, um sinal de evolução positiva para um princípio de amadurecimento social seria um laço entre os participantes de Meeting e os autores de Appel, com capacidade para assumir o que têm em comum e o que os distingue; tendo a liberdade de, talvez, chegar à conclusão que são incompatíveis. Se a situação é como a que descrevem os artífices de Meeting e os autores de Appel, a simples coincidência de ambos projectos deveria suscitar pelo menos um interesse recíproco nos seus respectivos animadores. Até onde sabemos, não é o caso.





Gilles Dauvé, 2004

* [http://meeting.senonevero.net/]

[1] R.Simon, BP 17, 84300 Les Vignères. [http://theoriecommuniste.communisation.net/]

[2] Les anarchistes et l’expérience de la Révolution russe, 1921, reproduzido em Mémoires d’un révolutionnaire Laffont, coll. Bouquins.

[3] L’Appel du vide, Troploin, 2004, páginas 41-45. [http://troploin0.free.fr/biblio/vide/]

[4] Objectar-se-nos-á talvez com o exemplo de Marx contra Proudhon (Miséria da filosofia, 1847), onde a teoria comunista se precisa e se afirma em oposição. Sem dúvida. Mas dois anos antes, a polémica de Marx contra O Único e sua propriedade, precisamente porque só tenta refutar falsidades, para não dizer absurdos, passou por alto o que há de importante em Stirner, apesar de Stirner, na perspectiva do próprio Marx. (Cf. Daniel Joubert, Marx versus Stirner, L' Insomniaque). Quanto ao ataque de Marx contra Bakunin, até um historiador tão pouco anarquista como F. Mehring reconheceu há muito tempo a má fé e a deformação dos factos introduzida por Marx. A demolição de escritos e práticas efectivamente muito criticáveis de Bakunin serviu a Marx para não ver o alcance das críticas justificadas que o anarquismo dirigia aos sindicatos e aos partidos socialistas nascentes (Cf. Bakunin, M.Grawitz, Calmann-Lévy, 2000). Bons contra-exemplos dos méritos da polémica.

[5] [http://lamaterielle.chez-alice.fr]

[6] Un monde sans argent: folheto em três volumes publicado pelo OJTR em meados dos anos setenta. [tradução portuguesa: http://www.geocities.com/lipstickinrage/msd0.htm ] Hic Salta: revista publicada por ex-membros de Théorie Communiste (um dos quais publicou La Materielle – cf. nota 5 - e participa do projecto de Meeting), 1998: cf. o artigo La question du communisme.

1 comentários:

Appel pode ser lido em português aqui:
http://www.radioleonor.org/wp-content/uploads/2009/01/appel.pdf

8 de fevereiro de 2009 às 23:24  

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