por JÚLIO HENRIQUES

No n.º 5 da Utopia, Mário Rui Pinto deu a uma útil e pertinente resenha de comentários sobre o anarquismo, vindos a lume na imprensa, o título de «O anarquismo na comunicação social em 1996». Esta expressão, comunicação social, empregada correntemente em Portugal, não é porém, a meu ver, nada inocente e merece que a gente se detenha nela.

A sua origem, no vocabulário português e como substituto da palavra imprensa, parece remontar a um pouco antes do 25 de Abril de 1974, tendo esta curiosa congregação de vocábulos sido forjada, segundo Afonso Praça, no sector jornalístico católico. Julgo no entanto que só após o 25 de Abril a expressão se generaliza. A sua generalização decorre provavelmente do facto de em 1974-75 ter acontecido na sociedade portuguesa uma verdadeira comunicação social, no decurso do movimento revolucionário dos trabalhadores que começou por libertar a palavra das suas cangas, pondo as pessoas, pela primeira vez, a comunicar entre si directamente, ou seja, socialmente, sobre as questões essenciais, todas elas relativas a uma possível libertação da tirania económica.

Não obstante, já então foi abusiva a perfilhação, pelos jornais, rádio e tv, deste cognome para designarem a sua actividade, embora o clima de exaltação decorrente do fim da censura suscitasse a ideia de que a imprensa deixaria de mentir organicamente, aceitando-se nessas condições como coisa natural que os jornais, a rádio e a televisão pudessem transformar-se em instrumentos da comunicação social que alastrava no terreno público. E, de resto, durante certo tempo (que durou pouco) alguns jornais chegaram de facto a ser veículos de transmissão daquilo que os colectivos de trabalhadores e moradores formulavam com vista a uma vida livre da pobreza, da exploração, do medo e da mentira.

Seja porém como for, parece-me inaceitável acolhermos hoje, acriticamente, semelhante terminologia. O acasalamento destas duas palavras é uma clara mistificação, ou automistificação. A linguagem da imprensa, seja ela escrita ou falada, é sempre unilateral, e com a evolução da dependência de todos estes organismos (que antes de mais nada são empresas) perante os grupos financeiros seus proprietários, aquilo que em geral difundem vai-se equiparando a simples propaganda estatal e económica, ainda quando indirecta (como acontece com tudo o que diz respeito à praga futebolística, tão omnipresente como foi no fascismo, ou ainda mais). O caso da televisão é o mais evidente, e só por abuso de linguagem se pode chamar informação àquilo que esta vomita, contaminado como se encontra o terreno «informativo» onde ela assentou arraiais; mas a rádio, os jornais e as revistas de grande tiragem seguem-lhe as pisadas a muito pouca distância. A televisão, o órgão da máxima vulgaridade, é o critério por que se regem os outros meios de massas; é aliás um fenómeno que podemos observar todos os dias, se tivermos estômago para tanto.

A expressão comunicação social implica reciprocidade, implica a impossibilidade de alguém, entidade ou indivíduo, exercer um poder incontestável na sua manifestação imediata. Dá-se aqui, por conseguinte, no caso desta nomenclatura recuperada, uma típica inversão de significados, em que o capitalismo da fase reformista se tornou pródigo ao procurar proceder a uma domesticação sistemática por indução cultural.

A difusão pacificada desta novilíngua pode comparar-se à acção de um vírus — de um vírus conceptual cujo efeito, aparentemente anódino, consiste, por ricochetes sucessivos, em desarmadilhar a linguagem crítica, tornando-a inócua. Não podemos, é óbvio, falar a língua do inimigo quando tratamos de formular uma desmontagem das suas instâncias de poder — porque este poder começa, justamente, na nomeação, na apropriação da língua em conformidade com os objectivos económico-estatais. Seria sem dúvida útil registar as múltiplas expressões deste quilate que a imprensa carreia, das mais simples às mais complexas, e tentar analisá-las. Estou a lembrar-me de uma outra: a palavra populares para designar um certo número de pessoas agindo de determinada maneira numa ocorrência. Em prosas deste género: um grupo de populares manifestou-se ontem diante da Câmara Municipal…; os populares que assistiram ao acidente…; muitos populares aplaudiram o vencedor… etc. Podemos nomeadamente verificar que a palavra, nesta acepção, tem uma clara conotação paternalista e pejorativa, decorrente do papel «superior» que o jornalista imagina exercer e do estatuto de inferioridade desses tais «populares». Pois por que razão não escreve ele, ou diz, pessoas, muito simplesmente? Substituindo populares por pessoas, a diferença salta à vista.

Outra questão é a dos termos a empregar para referir, pelo menos com menor irrealidade conceptual, esse conjunto de coisas a que em inglês se chama mass media. Chamar-lhes mídia, como fazem os brasileiros, é uma solução desastrosa: traduzir meios por esta corruptela é acrescentar nebulosidade a uma confusão. Agustín García Calvo, que além de um vigoroso poeta é um atento filólogo, forjou, em Espanha, a expressão «meios de formação de massas», que, ao curto-circuitar a fórmula «meios de informação de massas», já contém a crítica daquilo que designa; parece-me uma enunciação excelente. Como se trata duma expressão comprida e na linguagem coloquial tendemos a encurtar os conceitos, julgo poder-se apropriadamente abreviá-la, nas circunstâncias da fala, para uma expressão mais curta: meios de massas. Que afinal, e cá chegamos, é a exacta tradução de mass media

E, de facto, por que razão usarmos subterfúgios? Mídia é-o por criar um neologismo sem substância, comunicação social porque reveste com uma impostura aquilo que pretende designar. A expressão inglesa não revela apenas uma grande capacidade de síntese. Sem cerimónias, dá a estas coisas nomes «brutais», ou seja, pragmáticos, mas por isso mesmo mais simplesmente verídicos: porque os comuns jornais, revistas, rádio, televisão, cinema & o resto são efectivamente meios (de propaganda, de formação1) destinados a massas de indivíduos. Meios que este desígnio define perfeitamente logo à partida.

Estas questões não me parecem de somenos importância. Ao adoptarmos, por mero hábito, a terminologia da ideologia dominante (a que também podemos chamar poder estatal em sentido amplo), estamos necessariamente a resvalar para dentro dela — pelo menos no plano linguístico. Ora a linguagem da nomeação, que define, pedagogiza e orienta, mostra-se cada vez mais determinativa numa sociedade que tende (contra todas as aparências) para a uniformização, através do controle mental difuso e benfazejo.

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1 Sobre a noção de formação, criticamente enunciada por Agustín García Calvo, podemos reter também esta pertinente interrogação de Alexandra David-Néel: «Como pode um indivíduo que foi formado, ou seja, cuja natureza foi modificada para o levarem a parecer-se com um “modelo tipo”, falar da sua própria liberdade?» (Cf. Pela Vida, Antígona, p. 84.)

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Publicado no º 6 da revista Utopia.

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