PARTILHAR A REVOLTA


Uma mulher do Quebeque em El Salvador e no Brasil

Revolta camponesa nas Américas
Revolta camponesa nas Américas

Anite, filha de emigrantes portugueses de Montreal,
empenhada no movimento estudantil e em colectivos feministas, esteve em El Salvador e no Brasil, onde encontrou homens e mulheres ex-combatentes da FMLN e camponeses do Movimento dos Sem Terra. É desta experiência que nos fala, com um olhar lúcido sem o qual a palavra solidariedade perde todo o sentido.

CR: ONDE ESTIVESTE PRIMEIRO?

Anite: Em 1994 fui a El Salvador, logo a seguir aos acordos de paz. Chegámos a uma pequena comunidade camponesa, desprovida de tudo, a quem tinham sido entregues algumas terras. O nosso objectivo consistia em ajudar as pessoas de lá a construírem uma escola, mas o projecto não foi muito longe. Passado pouco tempo, entrei em contacto com pessoas, ligadas ao Partido Comunista, que tinham feito parte da guerrilha da FMLN (Frente Marxista de Libertação Nacional). Nessa altura, um dos debates na ordem do dia era sobre a formação da nova polícia nacional civil. A FMLN tinha investido muito neste projecto, pensando integrar nesta polícia uma parte dos seus guerrilheiros. Isto suscitava-me muitas dúvidas, porque criar uma polícia era o mesmo que preparar uma acção repressora. A maior parte das mulheres da guerrilha nem sequer podiam integrar-se nela, por não terem a estatura mínima prevista… Para mim, de resto, que fossem homens ou mulheres vinha a dar ao mesmo: era uma polícia! Além disso, falava-se deste corpo policial quando o direito de manifestação nem sequer fora restabelecido!

Os homens e as mulheres que tinham estado na guerrilha, diziam-me: «Tens razão, mas nós estamos confiantes.» E eu respondia-lhes: «Vocês estão mesmo confiantes, ou é o partido que vos pede que estejam? Os dirigentes da FMLN apoiam políticos que negoceiam com o partido no poder, a ARENA; esta e a ONU organizam a vossa polícia civil e o povo vota na FMLN. No dia em que o povo se revolte, faça greve e seja reprimido pela nova polícia, como irá a FMLN justificá-lo? No lugar do povo, eu cá concluirei que a FMLN traiu.» Não gostaram do que eu disse. Mas eu não ia ficar calada só por não ter nascido em El Salvador ou por não ter participado na guerra. Eu acho que ninguém tem o direito de me dizer que a minha opinião não é válida só por eu não ter nascido em determinado sítio. Já tive de aturar coisas dessas no Quebeque, como filha de emigrantes. Lá em El Salvador, tinha-lhes sempre dito que não era cooperante, que não tinha vindo só para estudar a situação, que partilhava a revolta deles.

Havia também a questão dos acordos de paz. A FMLN depusera as armas de acordo com a ONU. Tinham lutado por uma vida melhor, por uma reforma agrária, por menos exploração, e às tantas, de repente, não viam garantia nenhuma de reforma agrária ou de melhores salários. À noite, quando voltavam para casa, os ex-guerrilheiros continuavam a passar por atalhos. Durante as eleições, tinham sido abatidos militantes, homens e mulheres, candidatos da FMLN. Ao entregar as armas, a FMLN fora obrigada a declarar a totalidade dos seus militantes. Aliás, já não se podia falar de guerrilha clandestina, mas sim de Exército da FMLN, com um número x de homens, mulheres e espingardas… E todos se viam agora com um cartão da ONU no bolso, bem identificados! Aquilo enraivecia-me: «Parabéns! Agora que já sabem quem tu és e como te chamas, já te podem liquidar quando quiserem!» Nunca vivi uma situação de guerra. Mas parecia-me que nunca teria entregue as minhas armas à ONU. Mais valia fugir do país. Mais valia estar longe dali do que ver-me identificada daquela maneira.

Soube mais tarde que nem toda a gente tinha deposto as armas. A organização declarara pessoas que nunca tinham feito parte da guerrilha e que na prática cobriam quadros da organização mantidos na clandestinidade. À primeira vista, isto pareceu-me mais inteligente, mas pensando melhor vi que era uma atitude típica de organização vertical. Todos quantos voluntariamente tinham dado o nome, ficavam doravante vulneráveis perante o Estado, ao passo que os dirigentes se mantinham na sombra, protegidos. Aquilo não me agradava inteiramente…

A Revolta das Mulheres

Um ano depois, em 1995, decidi voltar para lá para trabalhar com grupos de mulheres. Em 94, as organizações que eu tinha frequentado eram muito hierarquizadas e em maioria compostas por homens. o Partido passava antes de tudo e a organização comunitária apenas servia para transmitir a ideologia do Partido. Eu queria agora ver como funcionavam as coisas do lado das mulheres. Nessa altura, as organizações femininas reivindicavam a sua independência e autonomia para com os partidos. Em 95, a FMLN estava a transformar-se em partido e formavam-se tendências. Os grupos de mulheres aproveitaram a ocasião para reclamar mais autonomia e a possibilidade de trabalharem no seio das organizações comunitárias sem estarem ligadas ao partido.

O grupo de mulheres que nos recebeu estava organizado na ADEMUSA (Associação das Mulheres de El Salvador) e punha a seguinte questão: serão compatíveis o grupo de mulheres e o grupo político? Por seu intermédio, encontrámos duas militantes do Partido Comunista que eram mulheres com uma formidável experiência política. Sentiam-se algo decepcionadas com o processo de paz que permitira a desmobilização da guerrilha e do movimento social. O trabalho deste grupo consistia em sensibilizar as mulheres do meio urbano para os problemas da violência, da saúde e da educação. O nosso grupo fazia uma abordagem feminista muito antropológica, ou seja, não reivindicávamos a defesa das mulheres contra os homens mas sim a luta por um género humano diferente, com atitudes diferentes.

Com as comunidades camponesas, a ADEMUSA pusera de pé um original sistema de ajuda. As camponesas podiam pedir dinheiro emprestado a uma caixa comunitária para financiarem as suas plantações. Não era a organização de cooperativas, era uma forma de entreajuda que me parecia justa. Se uma determinada camponesa não podia devolver o dinheiro, por causa da seca ou de outra coisa, a terra era partilhada igualitariamente entre todas. Punha-se, no entanto, um problema: as mulheres recebiam o dinheiro e os homens gastavam-no. Ora, a prazo, o equilíbrio do sistema ficava assim ameaçado. Também nisso a relação de poder entre os homens e as mulheres se tornava determinante. A contragosto, a ADEMUSA viu-se obrigada a pedir aos homens que co-assinassem os empréstimos, para eles se comprometerem também.

Neste segundo ano, encarei a sociedade de modo diferente. Ao trabalhar com os grupos de mulheres e com os camponeses, homens e mulheres, apercebi-me de que nem tudo ia por bom caminho. As pessoas começavam a criticar a ideia duma polícia civil, dizendo abertamente que as tinham enganado. A esperança de 94 esfumara-se. Ao viver com as mulheres, uma pessoa sente os problemas da sobrevivência no quotidiano, ou seja, aquilo a que chamo a dupla ou tripla opressão. A revolta das mulheres é menos intelectualizada e passa por menos mediações, é mais espontânea e mais directa. Por exemplo, eu tinha encontrado uma mulher que estivera na guerrilha nos anos 70 e a quem tinham dado uma leira de terra. Esta mulher era muito crítica. Segundo dizia, a situação agravara-se após os acordos de paz. Dizia até que tinha saudades da época da guerrilha, da comunidade de luta e do funcionamento igualitário que então imperava. Não acreditava na política oficial, eleitoralista, da FMLN. «Os que dantes tinham tudo, continuam a ter tudo, e os que não tinham nada, hoje ainda menos têm!» Sentia-se também muito revoltada com a reforma agrária, porque só quem tinha algum dinheiro podia pagar as terras pretensamente distribuídas. Na realidade, isso era conforme as regiões. Onde a guerrilha fora poderosa e onde o campesinato se mostrara muito combativo, as terras haviam sido ocupadas. Tendo em conta a relação de forças nestas zonas, os membros da FMLN tinham podido negociar a distribuição das terras com o governo e os proprietários. Mas estávamos longe duma reforma agrária.

Em três comunidades próximas do P.C., situadas em sítios diferentes, uma comunidade conquistara as terras, uma outra ocupava-as, esperando que lhe fossem concedidas, e a terceira comprava-as. Nesta última, as pessoas podiam escolher entre comprar as terras de modo colectivo ou individualmente. É claro, iam endividar-se, mourejar e a seguir perder novamente as terras em proveito dos bancos, porque nunca conseguiriam pagar os créditos. Nunca poderiam tornar-se competitivas. Na comunidade onde estávamos, o Partido Comunista incitava os camponeses a trabalharem a terra colectivamente. Mas ninguém queria saber. A mentalidade era muito individualista, mesmo quando a comunidade conseguia construir uma escola. Para isto, cada família dava umas tantas horas de trabalho por semana. Eram na maioria refugiados, camponeses, homens e mulheres, vindos de outras regiões. Havia também antigos combatentes de ambos os sexos, bem como pessoas da região que tinham apoiado a guerrilha e se viram obrigadas a fugir. Em 1994, a comunidade tinha acabado de se instalar e eu não tinha visto nenhumas separações entre as casas, nenhumas vedações. Um ano depois, cada família vedara o seu lar, o seu terreno, instalara portas e ferrolhos. Aquilo espantou-me. A comunicação no espaço já não existia. Os únicos que o não tinham feito eram os homens e as mulheres que partilhavam a ideia da colectivização. Quanto aos outros, nada se passara no seu espírito. Sempre aquela ideia de que uma pessoa pode viver mais facilmente na sociedade se agir individualmente.

Havia mesmo um debate sobre os prós e os contras da colectivização, ou isso não passava duma palavra de ordem política vinda de cima? Estou a pensar naquela magnífica passagem do filme de Ken Loach, "Tierra y Libertad", quando os camponeses e os milicianos discutem juntos sobre a opção da colectivização.

Onde eu estava, nunca assisti a tais debates. Sei que em 95 alguns camponeses, homens e mulheres, se tinham agrupado para comercializarem os seus produtos. Visto daqui, isto parece não valer grande coisa, por continuar no contexto mercantil, mas eu vejo nisso um começo de associação entre as pessoas. Como por acaso, eram pessoas que tinham participado na guerrilha. Estive também numa outra comunidade onde as terras tinham sido ocupadas pelos camponeses. Nesta, só alguns membros tinham participado na guerra, mas todos tinham vivido uma experiência de solidariedade, escondendo em suas casas pessoas da FMLN. Emanava de tudo isso um forte espírito comunitário e tinham mesmo ocorrido realizações colectivas concretas: uma creche, uma escola, um posto de saúde. Segundo percebi, as terras não eram colectivizadas, sendo-o todavia as sementes e a comercialização dos produtos.

Estas experiências deram-me muito que pensar. No primeiro ano, fui convidada a falar em público, em nome da solidariedade internacional. Pedi aos camponeses, mulheres e homens, que trabalhassem com a FMLN. Naquela altura, a direita também prometia fundos para a agricultura, fundos esses que nunca chegariam às mãos das pessoas. Com a FMLN, o dinheiro apesar de tudo chegava às mãos do povo. Mas no segundo ano disse a mim mesma que já não podia falar às pessoas daquela maneira, visto conhecer melhor a situação e ter menos ilusões. É certo que precisamos sempre de esperança, de acreditar nalguma coisa…

Mas o que é que me tinha levado a mudar de opinião? Em 95, a FMLN estava a atolar-se nos compromissos do acordo de paz. O que estava em jogo, cada vez mais, eram arranjos políticos e a população continuava a viver na mais absoluta miséria. A esperança na FMLN já não existia. Continuavam a dizer às pessoas que era preciso acreditarem e terem confiança, quando os próprios dirigentes já não acreditavam. O choque veio em 95, quando vi a FMLN votar com a direita, no parlamento, a repressão duma greve! Só um deputado da FMLN, Dagoberto, um comunista, votou contra.

Houve prisões, operárias e operários foram atirados para a cadeia e eu soube por amigos e amigas que nas fábricas e nas associações de bairro os trabalhadores, homens e mulheres, pediam contas à FMLN. Exactamente o que eu receara em 1994: «Um dia destes vai haver uma greve e vocês vão reprimi-la com a polícia nacional civil. O antigo combatente, agora polícia, irá prender o trabalhador, estando ambos no mesmo partido político, pretensamente oposto ao regime.» Tudo isso me perturbou imenso. Hoje, seja qual for a guerrilha, já nem sequer ponho a mim mesma a questão, sei como a coisa funciona e aonde leva: tomarem o poder para fazerem a mesma sujeira. Deixei de acreditar nisso. Hei-de mesmo bater-me contra isso!

CR: FOSTE DEPOIS PARA O BRASIL...

Fui para lá em 1996, com um grupo de Organizações Não Governamentais alternativas que trabalhavam com o Movimento dos Sem Terra (MST). Fomos ter a uma cooperativa agrícola situada no Estado de São Paulo. A cooperativa, formada por cinco comunidades agrícolas, preparava-se para ocupar terras com vista a formarem uma sexta, chamada Comunidade Chico Mendes, do nome do militante camponês e ecologista assassinado. Para evitarem uma eventual acção policial, as camponesas e os camponeses tinham instalado as suas cabanas nas terras da cooperativa já existente. Do outro lado da estrada estava a terra que iam ocupar. Uma noite, a assembleia camponesa decidiu proceder à ocupação manhã cedo. Perguntaram-nos: «Vocês querem participar?» E nós dissemos que sim. A maneira como eles procedem à ocupação não consiste em colocar uma bandeira no terreno nem em construírem casas. Ocupar significa cultivar a terra. Era época de sementeiras e por isso impunha-se agir com presteza. Mal as pessoas tinham começado a trabalhar, chega um tipo, representante do proprietário. «Esperem aí! O processo legal ainda não foi concluído, tem de seguir seus trâmites, pode ser que vos vão ceder a terra, etc…» Deixaram-no falar, o tipo falou durante uma boa meia hora, as pessoas ouviram-no calmamente, de braços cruzados. No fim, um dos camponeses do MST retorquiu-lhe: «O processo jurídico é uma coisa. Vocês têm seus advogados, nós temos os nossos. Isso passa por onde tem de passar, seguindo seus trâmites normais. Mas nós, se queremos comer, temos de cultivar já essa terra.» Era tão simples como isto. Muito concreto.

A Distribuição Segundo as Necessidades

Fiquei desde logo impressionada com o forte sentimento de solidariedade. Em cada ocupação, os membros das diversas comunidades vinham prestar assistência à nova comunidade ocupante. Os membros da cooperativa onde nós estávamos viviam bastante bem; comiam carne, tinham leite e cereais. Além disso, forneciam víveres ao acampamento Chico Mendes. Pessoas do acampamento trabalhavam por fora, nas propriedades da aldeia mais próxima, trazendo um rendimento complementar para a colectividade. A maior parte eram camponeses pobres, homens e mulheres daquela região, mas havia também pessoas vindas das favelas de São Paulo. É o resultado da acção desencadeada pelo MST nas favelas: «Vocês são antigas camponesas e antigos camponeses. Nunca vão achar trabalho na cidade. Venham ocupar terras!» Isso faz que as pessoas que tomam essa decisão são muito decididas e motivadas. Segundo o espírito do movimento, cada família fica depois livre de participar ou não na cooperativa. Uma pessoa pode perfeitamente participar numa ocupação sem por isso ficar obrigada a fazer parte da cooperativa. Todos os militantes do MST me diziam que nunca tentam convencer as pessoas a colectivizar as terras. Após cada ocupação, havia um debate sobre esta questão, mas as opções eram livres. Na maioria das comunidades onde estive, as terras eram colectivizadas, apesar de cada família ficar com um quintalzinho. Mas lembro-me também duma comunidade onde algumas famílias tinham recusado a colectivização e mantido as suas leiras. Convém lembrar que todas estas experiências são recentes. As primeiras ocupações datam de há uma dúzia de anos e as terras só são colectivizadas desde há três ou quatro anos. Tudo isso significa um enorme trabalho de organização. Antes da ocupação, um acampamento é a confusão. Uma cooperativa tem uma vida colectiva bem organizada: animais, plantações de árvores e de flores, colmeias. Não direi que as comunidades eram ecológicas, mas há nelas respeito pela natureza. Cada família ou indivíduo tem a sua representação no comité da cooperativa. Todos levam a peito que as pessoas se possam exprimir. Tenta-se de respeitar este princípio: a cada família o seu sustento. Uma família com quatro filhos terá com que os alimentar, mesmo no caso de apenas fornecer a mesma quantidade de trabalho que uma família com dois filhos. A distribuição faz-se segundo as necessidades de cada casa. Tudo isto em quatro anos! Disse para comigo que valia mesmo a pena fazer tais ocupações!



A Acção Directa Contra a Hipocrisia Política

Faço aqui um parêntesis para comparar a situação do Brasil com a de El Salvador. As condições são muito diferentes. Em El Salvador, a guerra civil esgotou por completo as energias. As pessoas não podiam ir ocupar terras quando a aviação andava a bombardear a montanha… De resto, o objectivo do governo consistia em destruir toda e qualquer produção agrícola, para impedir que a guerrilha se alimentasse. No Brasil, o campesinato pobre leva a cabo ocupações desde já há bastante tempo. O MST é hoje muito conhecido porque a repressão se intensificou, com o assassínio de muitos dos seus militantes, mulheres e homens, pelo exército e pela polícia, como aconteceu na comunidade Macacheira, no Estado do Pará, no Norte do Brasil. Em El Salvador, a opção era entre morrer de fome ou morrer de armas na mão. No Brasil, a opção está entre morrer de fome ou ocupar uma terra para sustento. É muito diferente! Sou jovem, mas desde que nasci, vi sempre, em Portugal, no Canadá, no Brasil, em El Salvador ou nos Estados Unidos que o ser humano muito dificilmente se deixa morrer de fome. Mesmo que seja preciso roubar ou matar, o ser humano fará isso, para poder comer. Em El Salvador, a política, os acordos de paz, os dinheiros a obter aqui e ali, tudo acabou por neutralizar as práticas de acção directa. No Brasil, a resistência dos grandes proprietários é enorme, não querem ceder terras nenhumas nem vendê-las. As pessoas estão encurraladas, só lhes resta a ocupação. É um movimento de massas muito decidido, e as pessoas hão-de prosseguir mesmo que disparem contra elas.



É certo que não devemos esquecer que por detrás do MST também há antigas forças políticas e sindicais com implantação na sociedade brasileira, o PT (Partido dos Trabalhadores) e a CUT (Central Unida dos Trabalhadores), embora os elos entre estas três organizações pareçam estar cada vez mais soltos. Há também uma grande variedade de correntes políticas mais ou menos organizadas, dos maoístas aos católicos da Teologia da Libertação. No interior do MST exprimem-se diferentes ideologias. Aliás, a escola de formação de quadros do MST baseia-se nas ideias políticas do maoísmo, do Che e de Zumbi (o mais conhecido dos dirigentes das revoltas de escravos negros do século XVII, os Quilombos). Pessoalmente, não acho necessários os ensinamentos maoístas ou guevaristas para as pessoas ocuparem e cultivarem uma terra… Pelo contrário, estas ideologias podem mesmo tornar-se um freio à livre vontade de as pessoas ocuparem terras e governarem as suas vidas. O passado político do socialismo demonstrou a que ponto os maoístas eram e são ainda aves de rapina, uns chefes que se aproveitam das lutas dos outros para atingirem os seus fins políticos. Hoje em dia, o representante oficial do MST, Stédile, faz o elogio de Marcos e dos zapatistas. Por mim, desconfio. A guerrilha dos tempos contemporâneos não poderá esconder durante muito tempo a sua hipocrisia política por detrás do capuz embuçado. Convém sermos claros: a maioria dos dirigentes do MST são apóstolos das ideias da esquerda reformista tradicional, remetendo para um futuro longínquo o advento da justiça social. Levam a cabo a luta em prol da reforma agrária no quadro do sistema capitalista actual, que não parecem pôr em causa. Mesmo se isso melhorar as condições de vida de muitas pessoas, as reformas continuam a ser reformas e o sistema em vigor mantém-se em vigor, bem como a propriedade privada e os proprietários. É certo que na prática as coisas não são tão simples como em teoria. Mas, por mim, digo que se militasse no dia a dia do Brasil, falaria de ocupações em prol da abolição da propriedade privada e não de reforma agrária. Por que razão continuar falando de reformar o velho mundo em vez de se inventar um mundo novo? Nunca se fala em agir em prol duma sociedade assente em bases novas. Nunca o MST vem clamar «abaixo o Estado», nem sequer «autogestão generalizada sob controle popular». Não encontrei libertários activos no seio do MST. Talvez existam. Em contrapartida, vi muitos quadros do PT com um interesse muito preciso: obter proveito eleitoralista com estas revoltas.



«Porquê comprar a terra, se ela nos pertence?»

Podemos fazer uma análise sociológica ou até jornalística das situações. Se formos militantes dum partido, detemo-nos nas formas de organização ou nas situações que reconfortam as nossas análises. Quanto a mim, fui sempre uma sem-partido, mas declaradamente partidária da base. Em El Salvador e no Brasil, quis ir mais longe que a simples rejeição desta ou daquela situação, pessoa ou organização, com o pretexto de que estavam enfeudadas a um partido ou a uma ideologia. Em cada acção humana há a riqueza da revolta contra as nossas condições de exploração, e isso não há partido nem ideologia que o possa completamente desviar. Ao ir ver por detrás do espelho que estas pessoas me entendiam, quis encontrar o autêntico. Enganei-me muitas vezes, mas também vi a vida verdadeira em acção.

Acontece portanto que nas cooperativas, as camponesas e os camponeses mais implicados se encontrem ligados a grupos políticos. Era o caso da dirigente duma das cooperativas onde estive. Gostei muito desta mulher e, para mim, o facto de ela ser membro dum partido não alterou em nada o meu sentimento. O que ela tinha feito da sua vida, o que tinha construído, fizera-o ela própria com os seus camaradas. Não fora o PT que o fizera por ela, mesmo tendo-lhe servido de apoio. Esta mulher vinha do Norte. O seu pai era um camponês sem terra. Ela tinha emigrado para São Paulo para trabalhar e economizar dinheiro, com a ideia de voltar para a aldeia e comprar uma terra. Era o seu sonho. Vivia numa favela e um belo dia decidiu partir com o MST, para ocuparem terras. Dizia-nos: «Quando eu era moça, nem podia imaginar que algum dia ia voltar aqui, obtendo uma terra sem pagar!» Era uma mensagem importante: porquê comprar a terra, quando ela nos pertence? Podemos ocupá-la!

Nem todas as mulheres que encontrei eram desta têmpera. Um dia fui ouvir Erundina, a dirigente do PT que foi chefe municipal de São Paulo. Tinha uma voz forte e calorosa, falava muito bem e sabia enfeitiçar a gente. O que ela dizia parecia-me formidável. Até à altura em que disse: «Se votarem por mim, se eu ganhar o poder, farei isso, farei aquilo.» Disse então para comigo: «Mas fazer isso como? Os capitalistas vão-te financiar? Essa é mesmo boa! O país está corrompido de A até Z, toda a gente compra toda a gente, e você vai fazer isso tudo só por ser eleita, é?» E comecei a ter arrepios no corpo todo, senti-me mal perante esta demagogia. Por vezes o PT pode parecer menos mau que os outros partidos, por ser menos corrompido. Mas ele só pode fazer aquilo que os capitalistas e os financeiros permitirem. Nos municípios que controla, acontece o PT realizar projectos financiados pelo FMI e pelo Banco Mundial. Não passa de um partido da esquerda tradicional que tem a ambição do poder. Estou convencida de que o PT seria o primeiro a opor-se a qualquer verdadeiro movimento de autogestão social. No MST e no movimento associativo brasileiro, há muitas mulheres. As mulheres têm uma enorme capacidade de sobrevivência e tornam-se facilmente o motor destes movimentos. Não é aliás específico a El Salvador ou ao Brasil. Desde há séculos, as mulheres foram isoladas na economia familiar, na economia local ou comunitária. Agora, as mulheres são maioritárias nas organizações e nos movimentos de base. É certo que há comportamentos políticos que tanto são adoptados pelos homens como pelas mulheres. Erundina é disso um bom exemplo. Mas convém dizer que não é porque as mulheres assumam o seu lugar que as suas pessoas e o seu empenhamento se vêem respeitados. Em El Salvador, onde as mulheres participaram maciçamente na luta, foi preciso elas fazerem pressão sobre a FMLN para que esta defendesse o direito ao aborto livre e gratuito, quando na frente de combate as mulheres podiam abortar livremente. Uma vez lançado no eleitoralismo, o partido esquecera a bela filosofia igualitária. As mulheres continuam a ser vítimas de discriminações. Não me surpreenderia que isso ocorresse no Brasil, no MST, embora em teoria a direcção diga respeitar os direitos das mulheres.



Entre Acção Directa e Legalidade

Voltemos à questão do estatuto jurídico da terra. A maior parte das terras ocupadas pertence à zona de aplicação da reforma agrária oficial; são terras que nunca foram distribuídas. Há também as terras distribuídas no início dos anos 70 e que depois os camponeses abandonaram. O Estado dera terras a famílias mas não lhes fornecera os meios necessários à sua exploração e rendibilidade. Por isso, estes camponeses e camponesas, pressionados pelo seu endividamento e debaixo da ameaça, voltaram a vender estas terras a indivíduos com dinheiro. É a evolução clássica em toda a reforma agrária capitalista, que desemboca invariavelmente na concentração da terra. O caso é que no Brasil, do ponto de vista jurídico, tanto a venda como a compra eram ilegais, visto as terras continuarem pertencendo à zona da reforma agrária administrada pelo Estado. Hoje em dia, os movimentos de ocupação são sobretudo motivados por esta situação de ilegalidade. O MST apoia-se nesta contradição e as comunidades que ocupam acabam quase sempre por fazer reconhecer o seu direito legal às terras ocupadas. É bonito, porque as pessoas se mobilizam, mas ao mesmo tempo são ocupações legais e as pessoas vivem-nas enquanto tais. Talvez isto retire ume parte da magia e do mito da ocupação, da acção directa. Os proprietários ilegais, quanto a eles, obtêm também um pequeno lucro com esta situação, visto receberem por vezes dinheiro do governo. Mas reagem menos violentamente às ocupações do que os outros proprietários. Talvez por saberem que estão na ilegalidade. Há também ocupações que se fazem num quadro ilegal, as das grandes propriedades privadas. Trata-se neste caso de algo que não é uma simples pressão para a aplicação da lei. Quando o MST fala de vitória, refere-se em geral às ocupações legais. Porque, nos outros sítios, sobretudo no Norte e no Nordeste, as pessoas são baleadas e assassinadas. Mesmo nas ocupações legais, numa ocupação calma como aquela em que participámos, o risco está sempre presente. Basta o proprietário, em vez de chamar a polícia, contratar uns cangaceiros para liquidar a cabeça do MST local. No fim de contas, por que razão apelariam eles aos militares, visto disporem do seu próprio exército de mercenários?



Dizes «a cabeça do MST local». O MST é então muito hierarquizado?

Lá, não me dei conta disso. Localmente, há uma representação e um representante do MST. Vivíamos nas terras, tivemos pouco contacto com o aparelho da organização. Visto de fora, o MST parece muito estruturado e hierarquizado. Isso inquieta-me um pouco quanto à orientação das ocupações. Há quem pense que o actual governo de Fernando Henrique Cardoso joga numa pseudoneutralidade nesta questão das ocupações legais, por estar a pensar nas próximas eleições. Deixa andar o MST ao mesmo tempo que encoraja um pouco os proprietários a vender as terras que não cultivam. Apresenta-se assim como o salvador numa situação social muito tensa. Seja como for, nem o MST nem os latifundiários estão satisfeitos com a posição hesitante do governo. No Estado do Pará, antes do massacre de Macacheira, os proprietários tinham apresentado mais de trinta pedidos de expulsão de ocupantes de terras. O governo não deu seguimento a estas solicitações, tal como se recusou a apoiar as acções do MST. Segundo parece, a polícia militar, que assassinou dezanove pessoas, interveio com ordens das autoridades locais estipendiadas pelos latifundiários.



Não posso deixar de me interrogar. A gente desenvolve uma luta, põe nisso toda a nossa energia e fica com a impressão de ter atingido um objectivo. E depois, no fundo, não passamos de marionetas. Quando a coisa interessa ao Estado e aos grandes proprietários fundiários para reduzir as tensões sociais, cedem… Dão-nos tudo, toda a gente acredita, vai-se votar, e continuamos a ser marionetas. Se não for a direita, há-de ser a esquerda quem tira o proveito.



Vivemos num sistema que sempre pôde adaptar-se à barbárie. Há hoje uma sobrepopulação que não é necessária à reprodução do sistema capitalista. É pelo facto de as pessoas lutarem que se cria uma dada relação de forças. Depois, é claro, o poder pode vir a integrar esta luta, tirar vantagem dela. Pensar que as pessoas são marionetas parece-me simplista. Não incomoda o poder que a gente morra por aí aos milhares, nas favelas, nos guetos ou até em países inteiros. Se as pessoas resistem, o poder tem então de correr atrás delas, tentando apanhar o movimento. É este o trabalho dos políticos. Mas entretanto as pessoas adquiriram uma experiência de luta colectiva e obtiveram resultados através da acção directa. Na nossa visão política, não te parece que isto é essencial?

Por certo. Mas eu referia-me ao jogo dos interesses políticos, ao poder de recuperação que as forças políticas têm. Obviamente, é preciso que as pessoas lutem. Também eu diria «ganhámos!», mas sabemos bem que toda a gente fica satisfeita, do governo aos proprietários. Sabemos que qualquer reforma neste tipo de contexto social é coisa efémera.

Agora uma reflexão mais geral, a propósito do Brasil. A questão da terra, as ocupações, não deve fazer-nos esquecer a gravidade do problema urbano, as favelas e a bárbara violência que nelas reina, o extermínio das pessoas e a pobreza em geral. É evidente que uma distribuição das terras reduziria a amplidão dos problemas, inclusive nas cidades. Na realidade trata-se de um problema de repartição das riquezas, ou até de acumulação de riqueza. Para uma minoria, a terra continua representando a riqueza, ao passo que para a maioria ela representa alimento e, por isso, sobrevivência.

Podes falar do trabalho que o MST faz nas favelas?

Fomos à favela de Vigário Real, no Rio de Janeiro. É uma das favelas onde reina a mais terrível violência. O presidente da associação de moradores falou-nos dos seus problemas, acabando na necessidade da reforma agrária. «Se pudéssemos obter uma reforma agrária viável, isso mudaria radicalmente o que se passa nas favelas.» Ele estabelecia mesmo um elo entre as suas condições de vida e a questão agrária. Os que partem com o MST já amanharam a terra, são camponeses de emigração recente para a cidade. Diz-se que o MST, doravante, conquista adeptos entre os que vivem nas ruas das grandes cidades e cujas condições de vida são ainda piores que as dos moradores das favelas… Muitas vezes só conhecem a monocultura (de café, de cana de açúcar, de tabaco); têm de aprender outras técnicas agrícolas para produzirem alimentos. Com os jovens é diferente. Quando uma pessoa nasce mesmo numa favela, e depois tem quinze, dezasseis anos, o seu modo de vida é muito urbano e não sai de lá para ir fazer a reforma agrária. Ser jovem numa favela, é antes de mais nada ficar confrontado com a realidade da violência, entre a polícia militar e os do narcotráfico.

Para concluir, gostaria de voltar ao MST. Estou convencida que os políticos, as direcções locais e nacional, procuram recuperar a luta destes milhares de pessoas. Deste modo, naturalmente, este movimento pode perfeitamente servir de trampolim para a eleição do político que ficar encarregado de o sufocar. A esperança está na determinação que as camponesas e os camponeses sem terra tenham adquirido na luta, na sua capacidade de autoorganização e na sua vontade de ultrapassar o simples quadro das reformas. Por ter caminhado, manhã cedo, na terra rubra do Brasil, com estes camponeses expropriadores, por ter visto brilhar-lhes nos olhos uma esperança em que tudo é permitido, desejo com toda a minha alma que a luta continue, tanto lá como aqui.

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Testemunho recolhido por Charles Reeve em Paris, 13 de Maio de 2004. Texto também publicado no Le Monde Libertaire de 18-12-04.

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